12 dezembro 2010

A Confraria

Eu vi na televisão – só podia ser – que cresce no Brasil o número de leitores. Será?

Vejamos: você é um escritor, e do tipo pretensioso; quer escrever boa literatura mesmo que isso represente fracasso financeiro e na melhor das hipóteses, depois de uma labuta tremenda – porque o esforço recompensa o gênio –, depois de anos e uma pilha enorme de páginas produzidas – algumas ganhadoras de prêmios importantes que não serão notícias no Jornal Nacional –, depois de tudo isso, talvez dois ou três casamentos e uma úlcera, você vai ser um ilustre desconhecido e vai ter de fazer vista grossa quando seu editor não conseguir disfarçar desagrado porque nem se passou dois anos e você já está com um livro novo.

De fato não é muito diferente o universo de um escritor que conquistou boa editora e é distribuído nacionalmente e um escritor ainda não reconhecido, inédito (admitindo o fato que também seja um bom escritor). O primeiro não precisa pagar pela edição do livro, embora não receba um tostão por ela. O segundo paga do próprio bolso, às vezes consegue incentivo do governo ou é promovido pelos amigos. Tanto um como o outro terão tiragens muito próximas e insignificantes: o primeiro três mil exemplares, o segundo mil. Nenhum dos dois espera uma segunda edição. (no campo das improbabilidades, a segunda edição de um livro vem logo após a segunda vinda de Cristo)

O primeiro terá seu livro exposto na vitrine das principais livrarias durante uma semana inteira, depois os livros serão recolhidos para as estantes secundárias e passado um mês são despachados para o depósito e em seguida devolvidos à editora que vai tentar uma parceria com o governo num desses projetos de incentivo à leitura e se tudo der certo aquele livro de contos que dialoga com Cortázar e Osman Lins, leitura densa e difícil, vai ser adquirido pela metade do preço e depois de vencer toda a burocracia vai parar numa prateleira bonitinha, pintada de verde e recostada numa parede cheia de desenhos de uma escolinha de primeira a quarta série.

O segundo vai fazer um lançamento para o qual serão convidados os amigos que vão comprar o livro para ajudar (não confundir com ler) estamos falando de filantropia, as pessoas estão imbuídas de um propósito mais nobre e sem falar que não lendo o livro a gente conserva o mito de que o autor fez por onde merecer seu nome indelével, com letras garrafais, na capa.

O que acontece hoje em dia é uma troca de figurinhas, foi o Marçal Aquino quem disse, e ele tem toda a razão. Quem ler literatura, boa literatura, é escritor. O aumento de leitores de que falam – o governo, que não é besta, e precisa vender seu peixe sobre os projetos nas áreas de educação e cultura – é mentira, conversa pra boi dormir. A tiragem de um escritor importante no Brasil não passa de três mil exemplares. Que história é essa de leitores? Que leitores? Do Paulo Coelho? Da Zibia Gasparetto? De auto-ajuda? Do livro que virou superprodução hollywoodiana? Não vale. É lixo.

Autofagia é o que existe de fato. Quer um exemplo? Pois bem, vou dar o exemplo: um grupo de escritores locais criaram um jornal literário que só teve cinco edições porque ninguém agüentava mais correr atrás de patrocínio. O jornal é bonito – alguns o consideram pretensioso. Um dos editores do jornal conheceu um escritor importante de São Paulo por ocasião de uma dessas festas literárias. Como esse tal escritor fosse muito simpático, o tal editor do jornal perguntou se ele não estaria interessado em colaborar com seu jornal. De fato é muito simpático o escritor, pois não apenas aceita como se sente (ou ao editor pareceu) lisonjeado. O conto foi mandado via e-mail e quando os editores – são três – venceram as dificuldades de praxe e pagaram à gráfica, o conto do escritor importante foi publicado numa das páginas principais. Todo mundo ficou orgulhoso. Como era de se esperar, alguns exemplares foram mandados para São Paulo, no endereço da residência do escritor importante que de fato é muito simpático.

Perceberam?

O texto do escritor de renome foi lido pelos escritores locais que tiveram seus textos lidos pelo escritor de renome. Escritor ler escritor que ler escritor. Está formada a Confraria, o resto é conversa, enganação do governo, manipulação de dados.

25 outubro 2010

medo

Medo. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Às vezes o medo não é justificado como no caso daquela menina e seu horror pelas borboletas. As asas da borboleta, o pó que se desprende das asas.

Há quem tenha medo de lagartixas, a pele fria do pequeno réptil na pele da gente causa alguma coisa. Gastura.

Há pessoa que é razoável até no medo que cultiva. De escuro não nem assombração que isso é medo que tem as crianças depois de assistirem a filmes de horror.

Um medo razoável é o medo que padecem as pessoas pragmáticas que no seu pragmatismo consideram a maioria dos medos pura frescura e invenção de analistas. Para elas o medo não é mistério e se explica (justifica) nos efeitos da desvalorização da moeda ou inflação, que é a mesma coisa ou na perda do emprego ou descoberta que o filho é gay.

Mas o fato é que o medo nem sempre é lógico. Por exemplo, quem tem medo do inferno é gente de bem, que vai à igreja e paga os impostos. Há o medo das alturas vertiginosas. E o medo é maior – das alturas – naquelas pessoas presas de uma vontade louca de pular. Os suicidas que encontraram a morte no beijo com o asfalto decerto morriam de medo de lugares altos; consumaram o projeto quando se tornou irresistível pular.

Para os medos se inventaram nomes. Estrambóticos, alguns. E ficam lá, no dicionário. Acrofobia é o nome da doença daqueles que se sentem atraídos pelo precipício. De claustrofobia sofrem aqueles que temem acordar na sepultura, ludibriados pela morte que os fazem morrer duas vezes. Uma doença também chamada de Lázaro.

Eu, por exemplo, morro de medo que meus sentidos não estejam funcionando direito, e fique comprometida minha apreensão da realidade. Foi assim que me senti esta semana, depois de assistir Tropa de Elite. Há filmes que nos deixam atônitos enquanto outros só servem para nos distrair enquanto comemos pipocas. Tropa de Elite além de ser um bom filme enquanto realização cinematográfica, é também do tipo que nos pega pela beca e nos sacode. Por isso, quando saí do cinema, fiquei meio aéreo e seriamente desconfiado de meu senso crítico, talvez embaçado e satisfeito demais com a normalidade.

20 outubro 2010

Carrero está bem

Entre os escritores do Brasil, e eu estou falando daqueles que são bem editados e já podem contar entre suas conquistas com prêmios literários etc, noto que há muito diletantismo. Talvez porque aqui literatura nunca foi encarada com seriedade, porque só é encarado com seriedade aquilo que gera lucro. Literatura não é pragmatismo, é coisa do espírito, e num mundo onde mesmo as coisas do espírito precisam gerar lucro – a doutrina da prosperidade que o diga – a literatura passa por excentricidade.

Talvez por isso e o fato de que a classe média brasileira não lê; os professore não lêem, nem os advogados que às vezes passam dez, vinte anos tentando passar no exame da ordem, tampouco os médicos, coitados, sem tempo para as coisas do espírito, ocupados que ficam a vida inteira com o ambicioso projeto de trabalhar muito para ficarem ricos, e a elite burra. Aliás, não se diz que o Brasil tem uma elite burra, pode-se incorrer em redundância. Já o povo, de todas as classes – o povo é uma classe? – faz um juízo diferente da literatura; pra ele literatura não é excentricidade ou perda de tempo, não é o mesmo juízo que faz a classe média ou elite. O povo não despreza a literatura, pelo contrário, sente por ela o mesmo que sentiam os católicos pela missa rezada em latim: não entendiam nada, mas por isso mesmo adivinhavam ali algo misterioso. O povo não lê não é porque o livro é caro. O livro é caro, decerto, mas existem espalhadas pelo país milhares de bibliotecas e salas de leitura que o presidente analfabeto criou. O povo não lê, na verdade, por duas razões: primeiro porque considera o livro algo misterioso e, como todos sabem, o povo é supersticioso, e segundo porque perdeu a inocência de tanto assistir televisão. A televisão é o veículo pelo qual o povo acompanha as modas inventadas pela classe média e a elite (em quem o povo se espelha), e entre tantas modas – algumas bem ousadas – não há nenhuma sobre o livro e seus mistérios.

Mas eu dizia que entre os escritores do Brasil há muito diletantismo, talvez pelas razões demonstradas, e outras, sem dúvida. Ser escritor no Brasil não é fácil. De todas as profissões, é, sem dúvida nenhuma, aquela que melhor representa o Mito de Sísifo. Por isso os escritores – desmotivados – não levam muito a sério o que fazem. Mas há exceções – sempre há exceções – no caso da literatura eu citaria Raimundo Carrero que neste momento, enquanto escrevo essas linhas, está na UTI, se recuperando de um AVC. Carrero é incansável, é um monstro e vem demonstrando nos últimos anos um ritmo de trabalho atípico, tão diferente da produção da maioria de seus colegas diletantes. Num país em que as editoras não estão nem aí se o escritor está ou não com um livro novo, num país que não existe a figura do agente literário, num país em que as editoras abandonam o escritor pelo caminho e mesmo o escritor importante, ganhador de prêmios e reconhecimento da crítica precisa implorar para seu livro ser editado e esperar um ano inteiro, às vezes mais, que o editor se resolva. Num país como este Carrero faz a diferença.

Ele começou no Movimento Armorial, mas abandonou aquele universo, sua inquietação é a daquele escritor em permanente busca por outras possibilidades. Ele costuma dizer que ainda não escreveu a obra pela qual deseja ser lembrado, talvez não, mas sua produção já conta com algumas obras primas. Mas não é o suficiente, não está satisfeito e quem ganha somos nós, seus leitores, vivendo todos os anos a felicidade antecipada de encontrar nas livrarias o livro que deixará satisfeito seu criador. Deus não está satisfeito com sua obra, Carrero compartilha dessa opinião. É preciso melhorar, é possível melhorar um parágrafo, uma página. Sempre. Ele sabe o que diz, disse a mim mais de uma vez sobre meus contos. Precisam melhorar! Sem dúvida. Carrero é obcecado pelo que faz, e dizer isso é dizer pouco, ele é o nosso Flaubert lá de Salgueiro para o Brasil, um dos pioneiros das oficinas de criação literária desmistificando o mito besta e romântico da inspiração como única prerrogativa do fazer literário. Viva o trabalho, diria Carrero, a labuta, o esforço que possibilita a transformação. Sem fanatismo não há boa literatura. Carrero é um fanático e é também um dos caras mais gentis que conheço, é daquele tipo de gente capaz de ligar pra você no meio da noite só pra perguntar se está tudo bem.

Está tudo bem sim. Estamos rezando por você, meu amigo, pedindo a Kafka que o proteja, a Henry Miller que não o desampare, a Zé Lins que não o deixe sozinho, pensando besteiras. Tudo vai correr bem, amanha vamos tomar aquela cerveja e dizer muita pilhéria.

13 outubro 2010

queixumes do carrasco

Louise Brouwn nasceu em 1978, foi o primeiro bebê proveta, depois nasceram muitos, fala-se em milhares. Este ano o Nobel de Medicina foi entregue a um dos responsáveis pela fertilização in vitro, o britânico Robert Edwards, de 85 anos. O Vaticano não gostou e quem nos deu a notícia de desagrado foi Ignácio Carrasco de Paula, presidente da Pontifícia Academia para a vida do Vaticano. Monsenhor Carrasco é porta-voz do Papa para assuntos relacionados à bioética, e disse que ficou perplexo com a escolha – que ele julgou fora de tempo – do novo laureado, lamentando o fato do prêmio ignorar as questões éticas levantadas pelo tratamento de fertilidade.

Monsenhor Carrasco diz que ficou perplexo.

Perplexo é como fica alguém quando sente uma forte indignação. Perplexos deveriam ficar todos os católicos – principalmente eles – com o anacronismo de uma Igreja que não se deu conta que a Idade Média ficou pra trás, quando seus representantes mais ilustres preconizavam que questionar a vontade de um soberano era o mesmo que questionar a Deus. Perplexos com uma Igreja e sua insistência em ser sempre o lado na discussão que não tem razão. A história mais clássica é a querela com Galileu, mas houve outras, antes e depois e em todas elas, a representante de Deus perdeu feio. É claro que naquela época o que ela não possuía em argumentos, esbanjava em poder, tanto é que outros opositores, também famosos, como Giordano Bruno, viraram churrasquinho. Mas esse tempo passou. Ninguém agora é queimado e a Igreja, com sua postura anacrônica apenas contribui para deixar ainda mais constrangido o próprio católico, coitado, que já tem de fazer verdadeiros malabarismos mentais – que Nietzsche chamava improbidade intelectual – e buscar na vida dos santos exemplos de cristandade já que muitos sacerdotes não servem de modelo (acho que nunca serviram) e estão envolvidos até o pescoço com a Justiça e o pagamento de indenizações a vítimas de abuso sexual. Mas o Estado é laico, Monsenhor Carrasco pode dizer o que quiser.

Estamos todos tranquilos, o carrasco não vai levar ninguém ao patíbulo, no máximo vai encontrar alguns simpáticos à sua causa, mas a maioria vai rir, achar engraçado e no final ninguém vai dar a menor atenção ao que o porta voz do vaticano tem a dizer sobre fertilização, manipulação genética, células-tronco embrionárias, clonagem ou uso contraceptivo da camisinha.

E tudo isso porque no Estado Laico – uma de nossas maiores conquistas – o carrasco não tem vez. Há severas sanções proibitivas sobre o uso indevido de abrir alçapões ou lidar com mecanismos de guilhotina. Também caçaram o porte do machado e lhe arrancaram o capuz da cabeça, é por isso que o encontramos nesse estado: fazendo muchocho e beicinho.

03 outubro 2010

narciso

O livro mais importante na vida de um leitor é aquele em que ele se reconhece. Falo de mim, de você. Muito tempo depois lendo e relendo aquele livro somos capazes de afirmar: ora, mas não havia nada ali que eu já não soubesse! De fato, há nessa afirmação uma confissão narcisista.

É claro que admiramos alguns livros por aquilo que eles foram capazes de fazer pela literatura, por exemplo, renovando a forma quando ela parecia impossível de comunicar nossas novas experiências. A esses livros devemos o renovado sentido do novo. Para os responsáveis, tiramos o chapéu. Kafka, Joyce ou Guimarães Rosa são ótimos exemplos. Também há os livros que nos despertam das letargias, os livros que causam perplexidades, aqueles que nos fazem desacreditar do gênero humano ou amá-lo incondicionalmente. Acho que todo mundo já se perguntou um dia: estou mais feliz depois da leitura deste livro? Provavelmente não, mas entendemos que foi necessário.

Mas não é desses livros – muito embora a química não os exclua – que eu me refiro. Não necessariamente dos renovadores da forma ou revolucionários ou aqueles que nos comunicam uma tristeza iniludível, mas daqueles livros que de cara nos pegam de jeito porque as metafísicas cruciais ali desenvolvidas são as mesmas que nos inquietaram a vida inteira, sutilezas que pensávamos só a nós pertencer, reflexos de nossas idiossincrasias. Refiro-me aos saudosistas – de uma saudade que também é nossa, é minha – que utilizando o recurso insipiente da linguagem e não uma sofisticada máquina do tempo, são capazes de recriar aquela época que foi nossa embora a idade nos desminta (essa contingência tirânica que nos limita e angustia e no final nos livra de todo sofrimento), falo dos bruxos, químicos e sinestésicos livros criadores de atmosferas. Uma atmosfera que eu – leitor – idealizo, mas não tenho consciência disso.

Eu conheci um senhor, alguns anos atrás, dono de uma clínica, em Recife. Naquela altura da vida ele apenas supervisionava o trabalho dos filhos, estava aposentado ou algo assim, dispunha de tempo, portanto, me disse ele, para ler e reler um livro. Fiquei surpreso quando ele me disse o nome, eu julgava aquele livro um dos exemplos de livros lidos apenas por escritores. Em Busca do Tempo Perdido é feito da matéria da minha vida – ele disse. Nenhuma biografia da minha vida poderia ser mais fiel aos meus sentimentos, nenhuma recomporia melhor a atmosfera da minha infância.

Claro estar que o mesmo livro, o livro de quem sou devoto leitor, pode não ser o seu, provavelmente não é, mas isso não importa, não estamos julgando méritos, não é tanto o livro, mas o quanto de alma gêmea ele é pra você. Pra mim. Não estamos falando de regras – que sirvam para todos – não é o caso de leis ou subordinações nem verdades absolutas. Provavelmente não há verdades absolutas, não nas coisas grandes, talvez nas pequenas. Na verdade eu estou falando de flerte, namoro.

Dizem os psicólogos de plantão que quando nos apaixonamos, é por nós que o fazemos, o outro é só uma projeção de nós mesmos, um ente que só existe a medida que alimentamos sua natureza feita da essência do ser por trás de nosso olhar. Algo parecido acontece com os livros de que estou falando, aqueles que foram feitos – intencionalmente ou não – da matéria de nosso ser, de meu ser. (É essa minha impressão mais viva) São livros e mais livros adquiridos ao longo de muitos anos e que traduzem o mais ousado projeto de compor uma biblioteca pessoal. Os livros ali distribuídos são iguais num aspecto: parecem tentativas de compreensão da minha alma – a alma do leitor que sou; que é você quando a experiência é sua, são formulações – muitas delas disparatadas – de hipóteses sobre a minha existência, meu lugar no mundo, meu lugar na vida do outro, sobre de que é feito meu sangue ou qual o tamanho do meu coração. Enamoramos-nos desses livros, e eu não sei se eles nos ajudam a enxergar além do nevoeiro ou se contribuem ainda mais com a cerração. Desconfio até que esta questão não tem a menor relevância.

29 setembro 2010

no campo de centeio

Se nO Médico e o Monstro Stevenson trata da esquizofrenia quando se refere ao Dr Henry Jekyll e sua personalidade bipartida, Salinger, no seu O Apanhador no Campo de Centeio, trata do stress quando nos apresenta Holden Caulfield, um adolescente sob forte pressão, em sua jornada de volta para casa, depois de ter sido “chutado” da escola, o Internato Pencey, onde seu desinteresse pelo estudo resultou na conseqüente reprovação em quatro matérias.

É dezembro, faz um frio desgraçado, mas ele vai se despedir do professor, o velho Spencer que está gripado. Nesse capítulo, o segundo, o que se vê é um professor que tenta justificar para si mesmo – principalmente para si mesmo – que teve de reprovar o aluno porque não havia outro jeito, que o aluno fez por merecer, que o desinteresse dele pela matéria não podia resultar diferente. Lendo o capítulo de novo, notei que tanto interesse em justificar a nota vermelha só podia ser sinal de que alguma coisa estava errada.

O velho professor não está feliz, muito pelo contrário, aquela nota o incomodou e ainda incomoda, mas não há nada que possa fazer, é refém do sistema (década de 50). Não importa que Holden seja inteligente e criativo, não importa seu ótimo desempenho em inglês tampouco que mais tarde venha a escrever um livro considerado o porta voz de uma geração, o fato é que ele, Holden, foi reprovado em quatro das cinco matérias parciais.

O livro conta a história de um adolescente expulso da escola e que volta pra casa e no caminho sofre a expectativa de enfrentar os pais. Um garoto aloprado e sua viagem, uma odisséia em que o viajante é dispensado de provar seu valor. Não há nenhum valor. A coragem, grandeza ou nobreza são adjetivos que não lhe pertence. Ele não é um cavaleiro, nem Dom Quixote, sequer a paródia de um herói, apenas um adolescente amargurado porque não cumpriu sua parte no jogo. É verdade que ele não escolheu jogar, que aquele jogo não lhe interessava, que considerava uma chateação suas regras. Mas é preciso jogar, todo mundo tem de jogar, é o único meio de provar seu valor, de ser aceito pela sociedade que seus mestres e pais se orgulham em pertencer. Ele é introspectivo e suas digressões denunciam a superficialidade da vida na classe média americana: seres esvaziados de significado.

Mas nada disso importa, não importa sua capacidade de interpretar uma geração, sua sensibilidade em detectar a futilidade dos americanos, novos ricos e entusiastas do que o dinheiro poderia comprar; o consumo desenfreado e a banalidade. O fato é que foi reprovado nas provas, precisa ser expulso, procurar seu lugar entre os fracassados.

O professor sofre, no íntimo sabe que o sistema comete uma injustiça em sufocar o menino, em avaliar seu talento tomando como base apenas seu desempenho em matérias escolares. Holden vai sofrer um esgotamento e vai parar numa clínica onde escreve o livro, sua válvula de escape. Outros, antes e depois dele, serão mais radicais: vão atirar nos colegas ou cometer suicídio.

O assassino de John Lennon estava com O Apanhador no Campo de Centeio quando cometeu o crime, disse que a leitura do romance “forneceria a explicação de sua relação ambígua com o ídolo.”

21 setembro 2010

o miserável homem de um livro só

Não há nenhum problema em se acreditar num Pai – a nostalgia do Pai, como se diz em filosofia – muita gente concorda que isso contribui para melhor viver a vida enquanto dura o fôlego, antes dos acontecimentos – inexoráveis – da velhice e a morte e a certeza de que nosso corpo – com certeza ele, pelo menos – vai virar comida de verme, cinza ou pó.

Nenhum mal, portanto; um Pai é sempre bom, ele e sua figura consoladora. O problema está quando resolvem nomear esse Pai, dá um endereço e um Livro onde tim tim por tim tim é apresentado um Código com normas e leis severíssimas sobre como deve proceder o filho. Quando isso acontece, o mal está feito. Cada um reivindica seu Pai como Único e Legítimo e quem não concorda com Ele merece morrer, mesmo quando esse mesmo Pai recomenda o amor e o perdão. Nesse momento o Livro com suas leis, normas e parábolas, perde consistência e adquire tal relativismo que se pode ler guerra onde está escrito paz e morte onde antes se lia amor.

Os eventos de intolerância religiosa não pertencem somente ao passado; todos os dias registramos casos, embora não se dê a eles devida importância. Isso que o Pastor Terry Jones disse numa declaração, que queimaria o Alcorão, não são apenas as palavras de um fanático enfurecido, muita gente que se julga decente e candidato mais que provável ao paraíso, no íntimo concorda que se deva queimar mesmo aquele livro ou qualquer outro que conte uma versão diferente dos fatos postulados pelo Livro de seu Pai – partindo do princípio que a assertiva em questão não constitua puro delírio e possa haver concordância entre o que se toma como fato e aquilo que se denomina dogma e por isso não aceita refutação porque toda sabedoria do mundo é loucura para Deus.

Por que os religiosos – principalmente os cristãos, em particular os que o vulgo convencionou chamar: evangélicos – insistem com a idéia de que todos precisam se salvar? – de quê? – e quase sempre a salvação está subordinada a aceitação de uma determinada religião ou seita e o pagamento mais que justo do dízimo sem o qual estaria comprometida a Obra do Senhor. Parece-me por demais pretensioso achar que justamente aquela seita ou religião é a correta, que todas as outras estão erradas. Algumas dessas seitas cristãs não têm mais do que dez, vinte ou trinta anos, e se julgam os verdadeiros escolhidos quando religiões da Índia ou China são milenares. Estarão todos errados? Gerações e gerações condenadas ao Purgatório de Dante?

Nesta celeuma os espíritos mais evoluídos – religiosos – preferem o diálogo inter – religioso. Mas como conciliar pólos antagônicos e não incorrer em improbidade intelectual?

Em Deus um delírio, que andei relendo por esses dias, Dawkins nos chama a atenção para algo curioso: um religioso sempre considera absurda a experiência religiosa do outro. Não do mesmo da sua igreja, terreiro ou mesquita, mas do outro, de outro credo, cultura ou tradição. É por isso que o pastor Terry Jones deseja queimar o Alcorão, ele acredita que no fundo no fundo está prestando um serviço a Deus, assim como antes dele, no 11 de setembro, os fundamentalistas islâmicos achavam que prestavam um serviço a Alá, quando destruíram as Torres Gêmeas. Isso me lembra Bertrand Russell, ele que por amar a verdade foi tão perseguido pelos religiosos do seu tempo – século XX. Escreveu num de seus artigos que os fanáticos são fundamentalmente iguais.

03 agosto 2010

curso de leitura

Acho que falta um curso de leitura. Sim, um curso. Há curso para tudo, até para... Não, não vou dizer. Não quero ofender a ninguém. Todo mundo tem o direito de fazer o curso que quiser. Pois então, por que não há um curso de leitura? Isso mesmo, você ouviu bem: leitura. As pessoas não sabem ler, e isso não é novidade, fala-se em analfabeto funcional, o sujeito que sabe juntar as sílabas, soletrar e formar a palavra que é pronunciada por ele num gesto mecânico. As palavras formam a frase, oração, parágrafo e aí o nosso amigo se embaralha todo e não consegue entender o que acabou de ler.

Tudo bem, esta é uma discussão, válida, sem dúvida, mas não é desse leitor – sem dúvida nenhuma aquele que mais carece de atenção – de quem desejo falar, mas de outro, um caso, talvez, menos complicado e que tem sua problemática – menos caótica –situada numa outra esfera. Falo do leitor médio. Ele sabe juntar as letras e formar as palavras, frases e orações e, diferente do outro, entende o que lê. Seu ecletismo lhe permite passear pela ficção e não raro a poesia. Comparece a lançamentos de livros de poesia, tem amigos poetas e sabe de cor pelo menos um soneto de Augusto dos Anjos. Gosta de romances, apesar de opiniões como a de um amigo advogado, formado num conceituado curso de direito da capital, que considera esse tipo de leitura uma perda de tempo. Ele – o tal amigo bacharel – não sabe, mas repete com suas palavras um axioma de Oscar Wilde. Pois bem, o leitor, esse sujeito que se senta para ler um livro sem futuro, como são os livros de literatura, normalmente perde tempo mesmo, mas não pelas razões sustentadas pelo senhor pragmático, e sim porque não tem critério, lê o que lhe cai às mãos e não distingue um autor do outro; pra ele livro é livro, as duas capas guardando o miolo de algum modo conferem legitimidade às palavras ali impressas.

Imagino esse leitor diante de enormes prateleiras de uma grande livraria. Ele vai à livraria e se sente o mais notável dos homens, um sujeito raro, pertencente à fina flor de uma sociedade sob a égide da cultura. Seus confrades são homens e mulheres – uma minoria, certamente – abnegados defensores de certo ideal dos antepassados, hoje vilipendiado pelas gerações mais novas. De fato, ele vai à livraria, cumpri um ritual, pois é um iniciado da tal sociedade, mas quando se vê diante das prateleiras de livros compreende como ninguém o significado da palavra Babel. As lombadas, com nomes de autores e obras não lhe dizem nada, ele se sente confuso, sente uma vertigem e é preciso ser levado às pressas ao banheiro onde vomita por dez ou vinte minutos. Quando se sente recobrado, atribui à indisposição os efeitos de uma intoxicação alimentar. Naquele dia desiste das prateleiras, vai ao mostruário e pega o primeiro livro escrito por bruxos ou espíritos desencarnados que encontra. Paga com o cartão de crédito e sai da livraria aliviado do vômito e da incursão no mundo de babel.

Não há exagero, é mais ou menos esse o perfil do leitor médio brasileiro. Ele não conhece a produção do passado – os clássicos – tampouco a da chamada pós-modernidade ou contemporaneidade. O sujeito afirma que leu uma edição resumida do Dom Quixote – dos tais famigerados paradidáticos – e nem se dá conta do sacrilégio cometido. Os eventos de literatura que se espalham pelo país, como a Flip, reúnem de um lado escritores consagrados que desenvolvem suas falas para aspirantes a escritores, jornalistas culturais, editores ou professores da área de letras que trazem seus alunos – alguns muito bem intencionados, outros nem tanto – como parte integrante de algum projeto pedagógico de incentivo à leitura blá, blá, blá. Nesses eventos, os escritores mais famosos não passam de ilustres desconhecidos. No país inteiro, segundo Marçal Aquino, existe uma média de 1000 leitores potenciais, isto é, aquele que não se enquadra em nenhuma das categorias mencionadas anteriormente, e mesmo assim cultiva o hábito de ir à livraria, onde escolhe um bom livro e o compra com a mais genuína intenção de ler porque isso lhe causa prazer. Ainda estamos naquela de nos comparar com a Argentina e nos espantar com o número de livrarias de Buenos Aires; uma para cada seis mil habitantes, contra uma para cada setenta mil brasileiros. É um saco, muita gente não gosta de tocar nesse assunto, fazer o quê?

O leitor médio devia aprender com aquele cara que gosta de futebol. Ele não joga nada, é perna de pau, mas tem seu time do coração, uma paixão que influenciou a esposa e os filhos _ às vezes a esposa é quem influencia o marido – pois bem, o cara não joga nada, não é jogador, treinador ou cartola, mas está por dentro de tudo, é capaz de fazer um diagnóstico da situação de seu time bem como dos adversários. Acompanha os campeonatos estaduais, nacionais e internacionais, sabe a escalação do time e se amarra nos programas de televisão especializados em comentar lances, além do caderno de esporte, o melhor caderno do jornal, o único lido do começo ao fim.

Coisa muito diversa acontece com o leitor médio. Ele não assiste a nenhum programa de televisão que entreviste o escritor, não lê o jornal que traz resenhas de livros, não compra nem lê revista especializada no assunto nem pertence ao clube do livro, por isso não conhece nenhum escritor. Muitas vezes acontece de estar lendo um livro e quando lhe perguntam o autor ele não sabe responder, diz que não se liga nessas coisas. Nunca compra livro; compartilha a opinião de que o livro é caro, não importa quanto sejam seus rendimentos, se de um salário mínimo ou cinqüenta. Desconhece as edições de bolso ou aquelas que contam com a participação de algum fundo de apóio à cultura, como foi o caso da belíssima coleção de Grandes Escritores da Atualidade, da Planeta DeAgostini; nomes como Saramago, Ian McEwan, Ernesto Sabato, Ítalo Calvino, Rubem Fonseca, entre outros, editados no melhor papel, capa dura e de excelentes traduções ao preço módico de dezesseis reais, adquiridos na banca de revista. Esse leitor lê o que lhe cai às mãos – já que não compra. Não estabelece um padrão, não distingue Stephen King de Philip Roth, seu nível de leitura não progride, de vez em quando – quando alguém lhe empresta – lê reportagens ou biografias de famosos, mas sua paixão mesmo são os livros de auto-ajuda.

É por isso que eu sugiro um curso. Um curso de iniciação à leitura, uma coisa que já acontece nas oficinas de criação literária, Carrero que o diga. Mas não falo de um curso para quem deseja escrever, mas para quem deseja lê, que a leitura é uma arte tão importante – decerto mais prazerosa – quanto a escrita. Uma vez eu li uma frase escrita numa dessas revistas de divulgação de literatura, a frase é curiosa e se aplica aqui: não devemos ler os bons livros, dizia a frase, mas os ótimos. É isso o que quero dizer com curso de leitura; os leitores precisam entender que há muita coisa boa a ser lida, mas a vida da gente não ajuda, é curta. E aí, paciência, não adianta culpar Adão, o tempo é finito, sejamos criteriosos em nossas escolhas.

04 julho 2010

José Saramago

Foram diferentes minhas reações diante de duas notícias acerca de José Saramago. A primeira quando o escritor ganhou o Nobel e a segunda quando o homem foi surpreendido – porque sempre somos surpreendidos, jovens ou velhos, saudáveis ou doentes – pela morte.

Foi em 1998, eu já conhecia o escritor fazia uns dois anos. Nesse período li pelo menos três livros dele: Levantado do chão, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Memorial do Convento. Recebi a notícia e desejei comemorar, mas naquele tempo – nem faz tanto tempo assim – não havia mais ninguém, dos meus conhecidos, que conhecesse Saramago, alguns já haviam ouvido falar, mas não tinham lido nada. Meu entusiasmo esbarrava sempre numa quase indiferença do outro. Mas eu estava animado, era um escritor que eu gostava e escrevia seus livros na minha língua.

Sexta feira, dia 18, entretanto, recebi a notícia da morte dele sem nenhuma reação. Eu queria sofrer, mas não sofria. Não tinha jeito, e durante o resto do dia e no dia seguinte também. De vez em quando me acontecia de encontrar pessoas– isso sem mencionar as ligações para meu celular – que me perguntavam sobre a morte, se eu já sabia... Eu sentia vontade de responder – talvez tenha respondido para alguns – que não sabia, e de novo tentava sofrer em vão. Nada de sofrimento. Nenhuma lágrima.

José Saramago se fez escritor – é pelo menos essa a idéia que faço dele – para ser útil. Parece uma contradição. Numa certa medida não deixa de ser, principalmente quando voltamos nossa atenção para o esteta. Não é por acaso que tenha publicado tão tarde, nele havia uma preocupação com o como escrever. É claro que para ele havia muito a dizer, berrar, gritar e denunciar as injustiças do mundo, o sofrimento do homem explorado pelo homem e a miséria do fanatismo, mas não é panfleto o que o escritor deseja produzir, não é um mero discurso, é arte, é literatura e aí reside a questão. De fato. Poucos escritores conseguiram a proeza de escrever uma obra engajada, pragmática, um romance, conto ou poema que fosse também, além do que sua natureza exigisse, um veículo de propagação de uma idéia. Essa subordinação da arte é perigosa e José Saramago sabia disso. Além do mais, as idéias ou verdades – mesmo as verdades ou aquilo que entendemos como tal – correm o risco de envelhecer.

Foram dois livros, lidos um depois do outro, que me apresentaram o universo romanesco de Saramago. Depois, claro, vieram outros que li com o mesmo deleite, alguns mais do que outros como O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas os dois livros, apresentados nesta ordem, me chamaram a atenção para dois aspectos fundamentais: o escritor e sua preocupação com o tratamento dado à linguagem e o escritor e aquilo que desejava comunicar ao mundo.

Em Levantado do chão, a história da família mau-tempo, lavradores do Alentejo, desde tempos muito remotos até a Revolução de 1974, eu me encantei com a oralidade inventada de José Saramago. Era o tipo de texto que nos prende porque exige toda a nossa capacidade de leitor, do outro que também é autor, numa certa medida, e participa efetivamente do processo de criação. Depois foi a vez do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também a prosa – aquela oralidade – e agora a história, uma de minhas preferidas. Mas não como é apresentada no livro sagrado que não suporta refutação, mas a história recontada – como antes já fora por Kazantzákis – do Crucificado que incorpora os elementos do humano e se faz humano. Nesse livro, profanar o sagrado não é desrespeitar, mas inquirir até onde nos bastam as verdades, até onde vai o mito e nos arrasta juntos e se ainda nos serve de modelo. José Saramago foi nosso Voltaire contemporâneo, talvez menos galhofeiro, mais sisudo, e quase sempre melancólico porque pessimista. Não o tipo de pessimismo que não acredita em nada, negativo, mas aquele que desconfia da normalidade, que conserva sua capacidade de se indignar.

Não gosto da morte. Aliás, na minha família, é uma tradição ninguém gostar da morte. Meu avô sofria de melancolia sempre que alguém o lembrava da morte. Ele já morreu, deixou de sofrer. Papai ainda sofre, e eu espero que continue sofrendo durante muitos anos. Eu idem. Mas não tem jeito, um dia, mais cedo ou mais cedo – porque é sempre cedo – eu e todo mundo vai se encontrar com a indesejada das gentes. Fazer o quê? Saramago parece que não gostava também. Para nós que nos pusemos em contato com o eterno – a literatura é uma das responsáveis por isso – fica difícil engolir a morte. Diante dela só a revolta. Mas não há o que fazer, além de se revoltar. No caso de Saramago, pelo menos, a morte adiou sua vinda e deixou que o homem completasse alguns de seus projetos – quase todos livros. É verdade que faltaram outros, sempre falta, mas acho que ele morreu consciente de que fez o melhor que podia fazer. E sua dignidade para com o fim sem nunca se sujeitar às idéias consoladoras da religião é a impressão mais forte que guardo dele e, talvez por isso, não sofri, o homem voltou ao nada, sua obra, entretanto, continuará conosco ainda por algum tempo.

23 junho 2010

Paris é uma festa

Tenho saudade de meu tempo de jovem adolescente quando lia sem entender nada os teóricos do Comunismo. Tenho saudade de Sandra, uma menina por quem estive apaixonado ali pelos meus 13 anos. Ela era linda, já tinha peitos – o que me rendia certa catarse solitária – e nutria por mim o desprezo característico que as meninas de 13 anos sentem pelos meninos da mesma idade. Sinto saudades de outras coisas que vivenciei e de pessoas que já não são as mesmas ou deixaram de existir. Mas também sinto saudades de lugares por onde nunca andei e de épocas que nunca vivi.

Uma dessas épocas é a década de 20 e um dos lugares – alguns já adivinharam – é a França. Paris, para ser exato. Tal experiência se repete todas as vezes que leio Paris é uma festa, do Ernest Hemingway. O testemunho que dá o autor é autobiográfico. O livro não é ficção, é memória e sem dúvida nenhuma se constitui na gênese de outro livro – este sim, de ficção – que eu leio com o mesmo deleite do primeiro. Todos já sabem: O Sol também se levanta. A atmosfera – ou a sensação que em mim provoca – que provém de Paris daqueles primeiros vinte anos do século passado povoada de artistas, músicos, poetas e escritores, a maioria pobre, muito antes da fama, vivendo um período de formação, mas sem a rigidez que lhes proibisse o prazer de tomar vinho, uísque e o que mais lhes ajudasse a combater o frio das casas sem calefação. Um período de formação que também incluía frequentar – porque faziam parte do meio – o ateliê de pintores excêntricos que mais tarde se suicidariam de tão excêntricos, acompanhados quase sempre – antes de cortar os pulsos ou morrer de overdose – de mulheres, algumas de vida fácil, mas todas lindas e seduzidas por eles – os artistas – e suas visões de mundo encantadoras, muito embora pessimistas ou niilistas ao ponto de Gertrude Stein taxar aquela geração de perdida. Tal atmosfera, como eu dizia, tem o efeito de me embriagar como o vinho.

Ter vivido naquela época – a mim parece – é pertencer a um dos mais interessantes períodos da história, e é claro que quando digo isto estou ajudando a construir o mito. Mas quem começou foi Hemingway. Foi ele quem disse que era pobre e feliz. Os poetas neoclássicos nos falam da vida campestre e de homens simples e rudes e, por isso mesmo, felizes. Hemingway nos dá conta de homens urbanos, sofisticados, excêntricos e exigentes, porém felizes. Parece uma contradição de termos. Mas, mais do que isso, é a sua experiência. Ele era jovem, estava apaixonado e entusiasmado com sua carreira de escritor. A gente não pode esquecer que o livro foi escrito muitos anos depois, um ano antes de sua morte. Hemingway estava saudosista daquele tempo e por certo idealizou muito, assim como eu faço – muitos fazem – quando lêem o livro e se deixam seduzir por ele.

Andar nas ruas de Paris. Nas ruas não, nas calçadas. Frequentar os cafés e quando não encontrar ninguém para conversar sobre o nosso mais novo projeto literário, sentar a uma mesa, e beber uma taça de vinho olhando para quem passa. Caminhar com eles, homens e mulheres – muitos dos quais morrerão na guerra – e despercebido do perigo que nos ronda, sentindo-se mesmo pleno de felicidade e desfrutando de uma inocência da qual sentiremos saudade mais tarde, imaginar personagens e poder traçar – um minuto antes do clímax alcoólico – alguns perfis de personagens.

Alguém sensato dirá que esta Paris não existe. Jamais existiu senão para Hemingway. Talvez. Não me interessa pensar assim. Só sei que todas as vezes que abro as páginas de Paris é uma festa sinto-me como se tivesse sido minha a experiência – e não a de Hemingway – de viver em Paris nos anos vinte, ao lado de minha esposa que me ama e me admira. Antes do fim da inocência. Mas não é apenas uma lembrança – e aqui me mostro mais poderoso do que o autor. Eu, o simples leitor – parece que ainda estou lá, sou o usurpador da experiência do outro, vivendo todos os dias aqueles dias felizes. Só preciso abrir as páginas. Durante o tempo da leitura dura em mim a sensação de eternidade.

09 junho 2010

Indignação

Tenho lido tudo o que vem sendo publicado do Philip Roth aqui no Brasil, nos últimos anos, e venho fazendo isso desde quando descobri o autor, a coisa de uns dez anos e por puro acaso. O livro que veio parar nas minhas mãos, por força do destino, foi O Teatro de Sabath. Encontrei-o na prateleira da livraria – pequena livraria que, me parece, ainda funciona num quartinho – minúsculo quartinho – na faculdade onde cursei letras no final dos anos 90. Carlos, o dono da bodega de livros, disse que o romance veio parar ali por engano – nas prateleiras só havia livros técnicos, muita coisa de biologia e história e também pedagogia e outros livros que propunham conhecimento e pragmatismo – os clientes do Carlos não perderiam tempo com livros inúteis – e por isso o Teatro estava sendo vendido por um preço realmente ridículo, só pra desocupar espaço na prateleira, disse-me o Carlos. Li o comentário na orelha do livro e o comprei. Mas não foi o enredo ou a informação de que o autor havia conquistado o pulitzer aquilo que me fizeram comprar. Minha maior motivação, devo dizer, foi mesmo o preço, uma ninharia.

Li o livro alguns dias depois e aí não parei mais, vieram depois dele Pastoral Americana, A Marca Humana, Homem Comum e muitos outros como o impagável Complexo de Portnoy. Todos publicados no Brasil. Gostei de cada um deles, uns mais que outros, mas gostei de todos e hoje, dez anos depois do Teatro de Sabath, posso dizer que sou um fã. Sem carteirinha nem gritinho. Apenas fã. O que o Philip Roth escreve eu compro e leio imediatamente, mesmo quando estou interrado até o pescoço noutros projetos de leitura.

Por esses dias li Indignação, seu penúltimo romance – o último já saiu, chama-se A humilhação – nele Roth conta a história de Marcus. Ao contrário de outros personagens que sofrem as pressões da velhice, este é jovem, e nem por isso menos trágico.

Vamos começar do começo, bem simples, não vou dizer tudo, imagino que muita gente ainda não leu e prefere ficar sabendo do desenvolvimento da narrativa pelo próprio Philip Roth, mas é preciso dizer que Marcus, o narrador, conta sua história do mundo dos mortos como o nosso Brás Cubas – isso fica patente na orelha do livro – logo não estou adiantando nada. Pois bem, Marcus, o autor defunto é um menino de 18 anos e estava na faculdade quando tudo começou, o contexto é do início da década de 50 quando seu pai é açougueiro kosher, isto é, vende carne sem sangue para judeus. Os EUA estão em guerra contra a Coréia e Marcus, que perdeu dois primos na Segunda Guerra, morre de medo de ser convocado para ser recruta zero e morrer. E se morrer é uma coisa estúpida e nos desafia os sentidos, morrer na guerra é ainda mais estúpido e sem sentido. Ele é um bom garoto, e de tão bom chega a ser perfeito, sua mãe acha isso, seu pai e todos os vizinhos judeus compradores de carne kosher também concordam. Dedicar-se aos estudos, portanto, que ele já fazia por vocação, pois é menino prodígio, autodidata e leitor dos bons, agora com a guerra e a possibilidade de virar estrume na Coréia, passa a ser, além da única via possível de interromper a tradição de açougueiros da família, a estratégia de que precisa para driblar o Tio Sam e não ser convocado ou pelo menos não ser convocado como soldado raso com todas as chances possíveis de efetiva participação no front.

Vamos lá. Ele sai de casa para fugir do pai porque o senhor açougueiro teve uma coisa, pirou, teve um surto, foi acometido pela síndrome do pânico. De repente ficou desesperado com a idéia – fixa – de que algo de ruim pudesse acontecer com o filho. Único filho. E esse desespero não tinha motivos. Tudo bem que havia a guerra, mas a guerra não convocaria o Marcus, e sobravam motivos pra isso, ele não se enquadrava no perfil de bucha de canhão, estava se graduando, era o melhor da classe. Aluno nota dez. Graduar-se ou se casar valia uma dispensa da guerra. A fixação do pai, portanto, era doença. É a mãe de Marcus quem reconhece isso. Fica claro na conversa entabulada com o filho quando vai visitá-lo no hospital. É ela quem fala do marido, hoje um desconhecido, tão diferente do açougueiro kosher com quem se mantivera casada todos esses anos, alguém que sempre conseguiu se manter na linha, justo, coerente e honesto, um homem de quem ela sempre se orgulhou e agora sentia medo. Tanta é sua convicção de que o marido não é mais o dr. Jekyll, que está disposta a se divorciar dele. Mas não se divorcia, e a isso se deve o acordo que faz com o filho. Ele não devia se encontrar mais com a namorada que cortou os próprios pulsos. Em troca disso desiste do divorcio e volta para Mr. Hide.

Pois é, há a namorada. A garota que faz sexo oral no primeiro encontro e deixa o Marcus meio desorientado. Mas nós estamos na década de 50, estamos nos EUS de maioria cristã e o Marcus, mesmo sendo ateu e dono de bom discernimento, ainda é um homem do seu tempo. Está preso a valores, mesmo àqueles que ele despreza e que, não fosse a precoce interrupção da vida, provavelmente superaria. Nós estamos – insisto – no início dos anos 50, ele só tem 18 anos e há a guerra. A famigerada guerra é a grande causadora do stress.

Pois é, o stress. Marcus não é inconseqüente juvenil como Ícaro, ele não é frágil, impetuoso ou cheio de ódio – talvez um pouco de ódio – mas um ódio por ser incompreendido, por tipos como o diretor e os dois alunos com quem ele divide os dois primeiros quartos. Um deles, o Betram Flusser, que faz barulho e não deixa o colega estudar. Pronto, se muda e quando se muda uma segunda vez o faz por razão diversa, mas ainda assim razão: o Ewleyn Jr. ofende a menina por quem Marcus se julgava apaixonado. Deixa o quarto, procura outro, qual o problema?

O problema é que desta vez tem que se explicar com o diretor da faculdade que o convoca a seu gabinete. Tem de explicar por que em tão pouco tempo mudou-se duas vezes. Marcus explica ou pelo menos tenta. E por mais que se explica não se faz entender. Não adianta dizer que o Betram é um vagabundo, esse sim um inconseqüente, que não deseja estudar nem deixar ninguém estudar. O diretor, que é religioso, e obriga a todos os alunos, cristãos e judeus, além dos ateus, a assistirem ao culto, ministrado por ele próprio, está disposto a não levar em consideração os argumentos de Marcus. Sobre o aluno já formulou seu conceito. E o conceito formulado por ele é de que Marcus está fugindo, do pai, do açougue, dos colegas de quarto, da guerra etc.

Então é a vez de Marcus pirar. É muita pressão, do pai, da guerra, dos colegas de quarto, da mãe e sua chantagem, da namorada que se decepcionou com ele, com sua reação de homem da década de 50 que não consegue encarar numa boa o fato de ser chupado no primeiro encontro e por fim aquele diretor Caudell e seu interrogatório despropositado, um tipo detestável de dono da verdade a quem Marcus considera supersticioso e limitado. É interessante o diálogo dos dois, quando Marcus, cansado de não conseguir se fazer entender na sua enésima tentativa de explicar as razões que o levaram a mudar-se duas vezes, explode e acaba dizendo tudo o que pensa do diretor e da maneira como ele conduz a faculdade obrigando os alunos, independentemente de suas convicções, a freqüentar o culto religioso. Philip Roth, no discurso da personagem, reproduz trechos inteiros de "No que acredito" de Bertrand Russell, livro considerado blasfemo pelos religiosos.

Então Marcus perde o controle das coisas e suas ações mais banais resultam no desfecho trágico. Mais do que Ícaro e sua queda provocada pela inconsequencia juvenil, a queda de Marcus não é tão simples, pois carrega consigo uma boa dose das pressões provocadas por quem não quis ou não pôde entender suas razões mais simples de encarar o mundo e levar a vida.

31 maio 2010

DEUS um delírio

Richard Dawkins, no seu brilhante DEUS um delírio, nos conta que “umas das punições mais rígidas do Antigo Testamento é a imposta à blasfêmia. Ela ainda está em vigor em determinados países. A seção 295-C do código penal do Paquistão prevê a pena de morte para esse “crime”. No dia 18 de agosto de 2001, o dr. Younis Shaikh, médico e palestrante, foi condenado à morte por blasfêmia. Seu crime específico foi dizer aos alunos que o profeta Maomé não era muçulmano antes de inventar a religião, aos quarenta anos. Onze de seus alunos denunciaram-no às autoridades pela ofensa.”

É interessante quando percebemos que a história não revela muitos casos – para não dizer nenhum – de ataques de ateus ou agnósticos contra religiosos. Os exemplos de violência partem quase sempre dos religiosos em direção àqueles que se arrogam o direito de não professar religião nenhuma ou o de admitir simplesmente seu sentimento de negação para com Deus. Eu conheci um professor de inglês que passou uns dias vivendo em nossa cidade, onde se empregou em algumas escolas. Ele apresenta duas peculiaridades que o distingui do tipo mais comum e normalmente aceito de heterossexual e cristão, é assumidamente gay e ateu. Numa conversa me disse que não enfrentou problemas por causa da opção sexual, pelo menos não o tipo de problema incontornável. Mas, quando em uma escola ficaram sabendo de seu ateísmo, as coisas tomaram outro rumo que resultou na sua demissão. Disse que não apresentaram nenhuma justificativa. Não houve sequer a tentativa em explicar o porquê de estar sendo demitido, apesar do bom trabalho desenvolvido na escola. Apenas apresentaram a demissão e pronto.

Há um capítulo inteiro em DEUS um delírio em que Dawkins trata dessa questão. Ser ateu não implica dizer herege, assassino ou bruxo, termos esses que em épocas bem remotas foram usados como “sinônimos” para ateu. Dawkins vai mais longe quando diz que o Velho Testamento não pode servir de modelo de moralidade, não para os nossos dias, não para o tipo de civilização que construímos. Nosso zeitgeist moral não nos permite mais considerar a mulher como mera propriedade. Hoje em dia ninguém concordaria com a atitude do hospitaleiro em Juízes 19, 25-26. Sentimos alguma dificuldade em entender as razões que levaram Jave a exigir de Abraão o sacrifício de Isaac, tampouco é justificado o genocídio contra os midianitas e a fúria de Moisés contra os soldados que pouparam as crianças e mulheres. Acho que muito provavelmente poucos entre nós concordariam com o procedimento de Josué em Jericó e ninguém que eu conheça está disposto a atender o Levítico que nos recomenda matar qualquer um que trabalhe no sábado ou mantenha relações sexuais com o mesmo sexo. Em outras palavras, o Velho Testamento pode ser uma boa obra de ficção, pode haver valor poético como há na Ilíada ou Odisséia, mas seguramente não há um valor moral que nos possa servir de modelo. Muitos que o consideram assim costumam seqüestrar aviões para bater contra prédios. Só há duas maneiras de entender tal livro como modelo de moral: Ou você é um fanático religioso, pertencente a alguma sociedade teocrática ou simplesmente nunca o leu.

André Comte-Sponville em O Espírito do Ateísmo, aborda, entre outras questões, a de que é possível viver sem religião e que há de fato espiritualidade no ateísmo. O livro é um convite ao prazer da leitura e seu autor, o filósofo, discorre sobre questões polêmicas com delicadeza e diplomacia. Aponta a ética como a luz do farol que deve guiar a todos nós, ateus ou religiosos, em nossa passagem pela vida. Para ele, esta vida, a vida que temos, é a única possível e diante disso a alternativa viável é viver do melhor modo possível. O ateu, mais do que aquele que espera os préstimos de uma vida pós-tumulo, tem as melhores razões para ser ético e isso faz toda a diferença e nos assegura que ele, muito diferentemente do que pensava certa personagem dostoievskiana, é nossa melhor aposta na construção de uma sociedade que tem na vida, seu mais precioso bem.

15 maio 2010

a visita dos mórmons

Dois mórmons com forte sotaque americano outro dia bateram à minha porta. Eu estava sozinho e eles perguntaram se podiam entrar para uma conversinha sobre algo que poderia me interessar. Eu sabia que nenhuma conversa de mórmon poderia me interessar, mas como tenho um grave problema de não saber dizer não, nem mesmo a mórmons, deixei que entrassem.

Cada um deles se sentou numa poltrona, gesto esse que foi imitado por mim, que fiquei com a terceira, a do meio. Os dois rapazes, de pele branca e sardas no rosto, ainda não tinham dito nada e eu já brigava com minha compulsão de olhar o relógio, afinal era sábado e aos sábados a gente só deve fazer o que gosta.

Um deles, como que adivinhando minhas considerações mentais a respeito de desperdício do tempo, perguntou-me se poderia contar uma história. Eu disse que foi pra isso que eu os deixei entrar, ele não entendeu minha ironia e prosseguiu retirando de uma pasta o que pareciam três cartas gigantes de baralho. Na primeira um homem de tez confiável entrava num bosque, na outra tinha sua atenção voltada para uma direção de onde emanava forte luminosidade e na terceira, com o semblante que era pura contrição, aparecia ajoelhado diante de um Jesus ariano de quatro metros de altura.

Durante a exposição das ilustrações, feita por um dos rapazes de sardas no rosto, o outro me narrava em seu português, carregado de sotaque, a história de como foi dada a Joseph Smith a revelação de um novo evangelho, apesar de Paulo, o inventor do Cristianismo, nos advertir que é anátema todo evangelho que não trouxer a assinatura de João, Marcos, Lucas e Mateus.

Quando ele terminou sua história, fitou-me por um momento e perguntou o que eu estava sentindo. Ele não me perguntou o que eu achava; o que pra mim devia ser a pergunta mais cabível, mas talvez sua pergunta mais do que uma intenção, refletia sua dificuldade com a língua. No momento não sei se encarei assim, lembro-me apenas que em cima da dele fiz minha própria pergunta, esta sim, cheia de intenção.

Posso ser honesto?, eu perguntei. Eles se entreolharam e não sei se entenderam. Houve qualquer coisa como uma confusão nos olhos deles. Talvez aquela palavra – honestidade –, ainda mais em português, fosse-lhes completamente estranha. Os mórmons ainda esperavam que eu dissesse o que sentia quando usei outra palavra, esta sim, mais do que a outra; completamente estranha no vocabulário mórmon. Eu disse que sentia incredulidade. Disse que não podia acreditar num Jesus de estatura normal, muito menos num de quatro metros, e disse que mais estranho do que aquela altura toda era o fato dele estar na América. Eles continuavam sem entender quando eu completei: Jesus era comunista, o que é que diabo fazia na América do Norte?

Quando foram embora, me restituíram o sábado e me deixaram de presente o Livro dos Mórmons, que eu conservo até hoje, só pra contrariar o Paulo.

05 maio 2010

Wilmot e Meslier

Clarence Wilmot, ministro presbiteriano, é um personagem interessante do John Updike. No romance, Na Beleza dos Lírios, ele é um religioso que resolve – para poder argumentar a favor de sua fé – ler autores como Nietzsche e Darwin a fim de refutá-los. Acontece, porém, que o tiro sai pela culatra e o ministro, ao invés de refutar os argumentos dos materialistas, descobre-se convencido deles. A implicação é perder a fé e se deparar com o absurdo. Durante algumas páginas acompanhamos o drama da personagem que tem sua vida transformada a partir daquele evento – o da perda da fé – de organizada e coerente em caótica. É interessante o conselho que lhe dá um de seus superiores, de que ele continuasse assim mesmo, sem fé, com a prática religiosa. Wilmot, sem temperamento para tanto, e cativo de uma honestidade latente para consigo mesmo, não empreende a farsa e abandona o ministério. É claro que ele sofre todo tipo de recriminação por parte da família que não consegue entender como alguém pode levar tão a sério uma crise de fé. Desistir do ministério significa perder o emprego e a casa paga pela congregação. O resto de sua vida será consumido vendendo enciclopédias para sustentar os filhos.

Eu me lembrei do Wilmot porque acabei de ler Memória, o livro de Jean Meslier, padre ateu que viveu no século XVIII. Diferente da personagem de Updike, o padre que também se descobre sem fé, não abandona o ministério e vive a farsa de ser padre durante quarenta anos. Nesse meio tempo ele vai escrever suas memórias e nelas dizer tudo o que pensa do cristianismo e catolicismo. Sem dúvida nenhuma as memórias o ajudarão a manter a farsa. Imagino o padre, todas as noites, munido de pena, tinteiro e papel, sob a luz bruxuleante de uma vela, fazendo a sua terapia como uma forma de não perder totalmente o respeito a si mesmo. O livro das memórias é seu testamento. Escrever para ser publicado postumamente não o redime da covardia, já que o morto – principalmente para um ateu – não pode mais ser atingido, mas o redime, em parte, da falsidade. Sua prática noturna, algo para a qual certamente exigia muito de um cura de província, semi-letrado, não deve ter sido fácil, mas foi a alternativa que encontrou para compensar uma vida inteira de mentiras.

Tanto numa personagem quanto na outra, uma tirada da ficção, outra da realidade, uma coisa é comum: a atração pela ética. E acho que nesse sentido os ateus ganham de disparada dos religiosos. Enquanto para estes ser ético constitui uma espécie de salvo conduto para a outra vida, sem a qual o prêmio do paraíso estaria comprometido, para aqueles, os ateus, ser ético é uma necessidade para se viver a única vida possível.

26 abril 2010

O livro de eli

Parece um bom filme, pelo menos no início, sentimos qualquer coisa como uma expectativa, quando acompanhamos o peregrino caminhando dentro de um cenário apocalíptico, alguma coisa que nos faz pensar – fez a mim – n'A Estrada, ótimo livro do Cormac McCarthy, com a diferença de que no livro as personagens reproduzem o humano e, no filme, o personagem representado por Denzel Washington parece mais um herói das histórias em quadrinhos.

Desde o início, fica claro que o Livro de Eli é na verdade a bíblia, novo e velho testamentos, e é provavelmente o último exemplar. Uma guerra varreu a terra e o livro, segundo comentário de uma personagem, foi o responsável porque, com a sua “verdade”, dividiu nações e instigou o conflito. No mundo desolado, não sobraram exemplares, tendo sido queimados para se evitar outra guerra.

Faz 30 anos que ocorreu a guerra e desde então a única prerrogativa é sobreviver num mundo caótico onde a antropofagia não causa mais pudicícia em ninguém e ter o controle da pouca água restante faz de um homem o senhor absoluto. Na estrada seguindo para o oeste, está o peregrino, ele acha que uma voz sussurrou àquela direção, é a mesma voz já sussurrada antes nos ouvidos de Moisés, Paulo, ou Joseph Smith.

A perseguição ao peregrino e o desejo de posse da bíblia traduzem a história da motivação. Tanto o mocinho quanto o bandido estão convictos de sua motivação. Enquanto o primeiro está crente de que obedece a uma ordem e a um propósito, algo maior do que ele, que ele não entende porque é insignificante, mas algo em que deve confiar porque bom e justo, o segundo deseja o livro para fazer dele uma arma para controle social, a mesma coisa que fez a Igreja Católica durante os mais de mil anos, que duraram a Idade Média.

O peregrino chega aos destroços de uma cidade dominada por um homem que a conquistou a base da força. É um tipo excêntrico que se espelha nos ditadores do século XX, logo na primeira cena aparece lendo uma biografia de Mussolini. Seu desejo, sua obsessão é conseguir a bíblia e para isto está disposto a tudo como utilizar mercenários selvagens, que matam e pilham a todos na estrada numa desesperada cruzada para encontrar o livro. Quanto ao peregrino ou mocinho, manter-se firme em seu propósito de conduzir o livro até onde deve, até onde a voz ordenou que levasse, não importa a custa do sacrifício que fosse, é aquilo que dá sentido ao homem que sabe que vai morrer, mas a morte não assusta mais, a própria morte deixa de significar desesperança e passa a ocultar outro sentido, o da promessa de eternidade.

O filme peca quando cria uma personagem estereotipada por que pautada no dualismo que divide mocinhos e bandidos. Não há inocência na história do cristianismo e é desrespeitoso – para não dizer pior – esse negócio de um livro, quer seja a bíblia, torá ou alcorão se arrogar o direito de verdade universal. A história do cristianismo não é a história dos justos, há, inclusive, quem faça uma distinção muito clara entre o Cristo e os cristãos. O cristianismo católico serviu aos poderosos, conferiu poder divino a todos os reis que só tiveram esse princípio violado em 1789, depois de considerada uma visão racionalista de mundo. Os peregrinos da vida e sua motivação são os resultados de fanatismo e ignorância, eis tudo. Se alguém quiser chamar isso de fé ou de boa vontade, fique à vontade, mas não muda o fato de que não passam de pobres ignorantes que não se dão conta de que estão servindo à causa do mais forte, como a legião de evangélicos que enriquecem com o dízimo a conta bancária dos Edir Macedos .

O filme não convence, a história é fraca, inverossímil, o peregrino é o Demolidor sem máscaras, capaz de lutar com um bando inteiro sem sofrer arranhões, num roteiro bem típico de Hollywood, que também inclui explosões e mensagem politicamente correta, é mais um bom exemplo que agrada ao público que vai ao cinema porque gosta de pipoca.

13 abril 2010

leitor de conto

O conto privilegia um texto sutil onde as palavras dizem menos e escondem mais.

Tenho reparado que mesmo bons leitores muitas vezes fazem uma leitura indigente do conto e não percebem nem vinte por cento das sutilezas ali escondidas. Não é uma informação o que se deseja obter no conto, mas uma revelação que exige, muitas vezes, nossa participação efetiva no processo criativo. Leitor de conto não é passivo e para angariar o prazer próprio da leitura lhe é cobrado o preço de certo esforço intelectual. É por isso que nenhum editor no Brasil gosta de livros de contos. Pior do que eles só os de poesia.

Vamos imaginar um conto em que um velho compra a casa onde nasceu e se estabelece nela de posse de seis garrafas de vinho. Uma vez ali estabelecido ele começa a tomar as garrafas e lamentar o fato de ter deixado um livro de poemas do Sá-Carneiro no hotel. Promete a si mesmo pegar o livro na primeira oportunidade que nunca aparece. Os vinhos são mencionados e todos são exemplares de uma adega de um homem ao mesmo tempo de posses e de bom gosto. Nesse meio tempo o leitor começa a suspeitar de que há algo estranho e aquele homem possivelmente veio ao encontro da morte. É interessante notar que o poeta português mencionado foi suicida. A suspeita se confirma quando nos últimos parágrafos ficamos sabendo que antes de comprar aquela casa e fazer sua viagem solitária, aquele homem enterrara a própria mulher. O conto termina quando ele relembra o projeto que se desenhou na mente enquanto faziam descer o caixão de Helena, sua esposa, tal ação narrativa se desenrolaria mais ou menos assim:
comprar a casa e mudar-se pra lá de posse apenas de um livro, provavelmente o que estivesse lendo, e algumas garrafas de vinho. As melhores de sua adega. O passo seguinte era fácil. Não comer nada, só vinho e quando as garrafas secassem nem isso.”

O patético suicídio por inanição parece encontrar na morte da mulher o possível motivo e é, certamente, essa a conclusão do leitor apressado.

Pois se não, vejamos. Se ele queria apenas se matar por causa da mulher morta, por que compra a casa onde nasceu?, não haveria nisso nenhum outro propósito?, a casa onde nasceu é provavelmente a metáfora de que o autor precisa para de novo confrontá-lo com seus fantasmas. Essa história, a outra história, que o Ricardo Piglia chama de secreta é aquilo que mantém a tensão do conto e o justifica como obra literária.

O senhor de quase oitenta anos, dono de uma cultura literária e uma adega comprada a custa de uma pequena fortuna foi uma criança quebradiça, debilitada e que por uma estranha razão sobreviveu aos outros, a seu pai morto de câncer aos 37 anos e seu irmão, ainda criança, morto num estúpido acidente automobilístico. Essa é a história que nos é contada nos flashbacks que aparecem entre uma garrafa de vinho e outra. Cada um deles é um pedaço do quebra-cabeça que vai construindo aos olhos do leitor o perfil da personagem.

Basta prestar a atenção, num momento e noutro ele se pergunta por que não morreu no lugar do irmão e lamenta não ter herdado o câncer do pai. Voltar a casa, portanto, é retomar o fio da discussão e continuar a inquirir o absurdo da existência que não nos poupa o sofrimento da perda. Ele deseja se matar porque não suporta a morte. É a história de um homem revoltado com o absurdo de existir e que vê na morte da mulher a gota d’água de que precisava para dar um basta.




12 março 2010

sobre o plágio insosso da realidade

Num dos contos de Detalhes de um Pôr-do-sol, Nabokov – ou a personagem de Passageiro – compara a página de literatura com a vida e entre uma e outra – em termos de complexidade e sucessão de eventos absolutamente não condicionados a uma idéia de ordem e concisão artística – lamenta a subordinação do artista que necessita modificar tais elementos que a realidade fornece para somente assim alcançar “uma espécie de harmonia convencional e concisão artística”.

No conto, a personagem – um escritor –, narra para outra personagem – um crítico – uma história por ele vivenciada. Nada de mais. Um episódio dos mais simples. Está num trem e faz uma viagem noturna. Numa das paradas ele acorda – pois está deitado na cama beliche – e percebe que há um novo passageiro na cabine. O sujeito está sentado na cama de cima e seus pés balançam enquanto se prepara para dormir. O escritor acorda com o movimento que faz os pés do outro e fita aqueles membros. Na verdade se detém e na descrição que faz enfatiza algumas particularidades como o fato de serem repelentes. Por fim os pés desaparecem debaixo das cobertas e seu dono passa a reproduzir um choro ou grunhido que se estende – com uma pequena interrupção aqui e acolá – durante a noite. O escritor, desperto, não tem alternativa senão acompanhar o lamento do outro, enternecer-se e se angustiar tentando imaginar sua origem. A noite é longa e o choro parece não ter fim, mas num dado momento o escritor é vencido pelo sono. Na manhã seguinte é despertado pelo camareiro. Levanta-se e nota que seu vizinho deixou de chorar – ninguém sabe a que altura da noite – e dorme profundamente enrolado dos pés à cabeça. O escritor, contando a história ao crítico, parece querer alimentar certo mistério em torno da identidade daquele homem que dorme. Mas o deixa para trás e ganha o corredor no momento em que o trem pára numa estação onde um grupo de policiais entra chamando a atenção de todos. Os homens da lei estão procurando por um assassino que matou a mulher adultera e que, ao que tudo indica, se encontra naquele trem. Eles revistam a todos e se dirigem para a cabine onde dorme o homem que passou a noite chorando.

Está tudo esclarecido, portanto, e o leitor esperto já adivinhou: o choro daquele homem durante a noite é o resultado de uma alma que sofre as dores de consciência próprias de quem cometeu um ato ignominioso. Mas o que se segue, entretanto, é o que a vida oferece e não a arte. O homem mostra os documentos e logo fica esclarecido que não se trata do assassino. Decepcionante?, talvez, mas são as tramas da vida, bem mais complexas, caóticas e reticentes do que aquelas oferecidas pelo escritor que usa “truques pessoais para dar sabor a nossos plágios insossos” da realidade.

Sem dúvida nenhuma é uma crítica aos escritores que na narrativa “punem a virtude no começo e o vício no fim”, e nesse grupo podemos incluir todos os autores de novela e romances campeões de venda feitos para agradar ao público. Nabokov faz a defesa do Realismo. O escritor, personagem do conto, deseja ser o autor de Lolita que nos chocou – não por uma mera questão de pudicícia – mas por nos contar uma história que se desenvolve a partir de anotações do diário de um pedófilo – com todos os truques para parecer real – e seu desejo abjeto por uma menina de 12 anos. Não há uma tentativa de parecer agradável, H.H. é um monstro, sem dúvida, e se simpatizamos com ele é porque sua estranheza não é tanta que o diferencie de nós mesmos. Nisso reside umas das preocupações de Nabokov: a realidade como é e não como gostaríamos que fosse. Em alguns momentos a narrativa de Lolita pode parecer enfadonha para um leitor convencional, mas na verdade ela revela a intenção do autor de impor à prosa um ritmo que imite a própria vida. Não há intenção de agradar – não é para isso que se presta o romance – mas para desconcertar o leitor e fazê-lo enxergar a si mesmo, desnudo do desejo de ilusão.

09 março 2010

Moisés, exemplo de intolerância religiosa

Os cristãos destruíram deuses em nome de seu deus soberano. O deus cristão é o único deus, mas os sacerdotes de batina enxergavam nos ídolos pagãos da Grécia ao México uma ameaça, coisa no mínimo curiosa, já que os pobres ídolos nunca passaram disso, de formas inanimadas de barro não transcendental. Quando leio o Velho Testamento noto que os padres tiveram em Moisés um bom exemplo de intolerância religiosa. O episódio é conhecido por todos: Moisés é advertido por Deus que a turma lá em baixo está aprontando. O velho patriarca levando as tábuas dos dez mandamentos – aquilo devia pesar pra burro – se apressa em descer o Monte Sinai e de fato encontra seu povo dançando na maior alegria diante do bezerro de ouro que foi moldado por Aarão – irmão e profeta de Moisés escolhido pelo próprio Iahweh – que usa sua arte para atender as aspirações do povo. Moisés, entretanto, não gosta nem um pouco do que vê; presa de uma fúria que só encontrará precedentes em Átila e no Incrível Hulk, faz pedacinhos do bezerro de ouro.

Nessa passagem bíblica há dois pontos interessantes e dignos de nota. O primeiro reforça minhas desconfianças nos fatos narrados. Não consigo entender como o mesmo povo que presenciou todos os prodígios realizados por Moisés em nome do Deus; vocês devem se lembrar de alguns como a vara transformada em serpente – não confundir com nenhum duplo sentido – , a água transformada em sangue, rios poluídos e peixes mortos e o desespero dos ambientalistas, as pragas de rãs, dos mosquitos e moscas e a peste que matou os animais dos egípcios, inocentes ou não. As úlceras, a chuva de pedras – não confundir com meteoros –, mais pragas de gafanhotos e finalmente o mais prodigioso feito contra os egípcios: a morte de todos os primogênitos. Segundo conta o livro sagrado, ninguém foi poupado, nem o mais pobre egípcio, nem mesmo aquele que morava fora da cidade e era contrário à política do faraó. Este, como todos os outros, sofreu a perda irreparável do filho. Aliás, nem o gado foi poupado, toda vaca e todo boi perdeu seu primeiro filhote – muito tempo depois um romano vai tentar um feito parecido, mas não vai chegar nem perto –, e todos esses prodígios, além do Mar Vermelho que se tornou terra seca para passagem do povo, tudo isso e outros “milagres” não vão surtir efeito sobre a fé dos israelitas em Iahweh. Cansados e impacientes com Moisés – que era péssimo escrivão – e por isso se demorava escrevendo nas tábuas os dez mandamentos, vão se dirigir a Aarão e solicitar

Vamos, faze-nos um deus que vá à nossa frente, porque a esse Moisés, a esse homem que nos fez subir da terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu. (Êxodos 32,1)

O segundo ponto é, na minha opinião, a história das religiões que está bem representada na fúria de Moisés quando desce do Monte Sinai e destrói o ídolo de ouro. Acho que as religiões, principalmente as de tradição judaico-cristã e islâmica, não têm feito outra coisa senão dividir os homens. Há uma ética, por certo, e dela a religião se aproveita e se sente justificada. De fato o Judaísmo, Cristianismo ou Islamismo não manda ninguém ser mau, e entre as oposições antitéticas, é preferível o bem ao mal, a virtude ao vício, a bondade e não a crueldade. Mas há muita hipocrisia e o convívio é apenas tolerado. É fácil notar isso. Temos desde exemplos os mais radicais como aqueles que nos oferecem judeus e palestinos que não fazem uma distinção muito clara entre as coisas de interesse do Estado e da Religião, e exemplos menos radicais – dependendo do lugar – como nos dão católicos e protestantes que até convivem pacificamente, mas no íntimo estão certos do quanto estão errados os outros em sua interpretação do Cristo.

08 março 2010

outro pesadelo de Kafka

Desde quarta feira que tento resolver uma pendência com o Banco Real. Desde quarta e ainda não consegui. O problema é simples: O Banco descontou sem aviso prévio a bagatela de 700 reais da minha conta. Não entendi e como sou desorganizado imaginei que alguma coisa me escapara, talvez um cheque que não anotei ou uma compra irresponsável – que tratei de esquecer – usando o Visa Elétron. Mas não foi nada disso, e tudo se esclareceu: O Banco descontou quatro parcelas de um empréstimo que eu – honrado que sou – já havia quitado como manda um bom acordo entre cavalheiros. Desde então venho tentando resolver o entrave que cada vez mais ganha contornos kafkianos.

O gerente me esclareceu tudo, não pediu desculpas e apenas me informou que eu deveria me dirigir ao setor onde meu problema seria resolvido. Não era ali, ele disse. Mas com o pessoal do empréstimo consignado. Acontece que esse tal setor está congestionado já faz dias como provavelmente não esteve nem durante o Bug do Milênio e por isso todos os dias tem sido a mesma penitência: Chego às 13 horas – é o horário que posso chegar –, dirijo-me ao setor de consignado, resignado retiro minha ficha e me sento na cadeira lendo uma coletânea de contos de horror – aliás, bem apropriado – até o momento quando alguém cerimonioso me informa que devo voltar amanhã, já que o sistema – por mais incrível que pareça – saiu do ar.

No primeiro dia peguei uma ficha de atendimento número 49 e fiquei deveras desolado quando comparei com o número na placa luminosa. Faltavam duas horas para se encerrar o expediente bancário e eu tinha 44 pessoas na minha frente. No segundo dia a ficha trazia o número 52 e as coisas só pioraram já que sexta feira o número pulou para 58. Hoje, segunda feira, fiquei quase feliz fitando um simpático 55.

Quando fui informado que o sistema saiu do ar – durante quatro dias consecutivos o destino nunca foi tão repetitivo – faltavam dez minutos para as cinco horas e nisso tudo intui uma simbologia dos números. A moça me deu uma ficha de número 6 e foi a primeira vez que peguei um número contendo apenas um dígito. Naquele meio tempo achei que só existissem dezenas. Amanhã estarei lá com minha ficha número 6. Na numerologia o seis significa liberdade. Não ambiciono outra coisa, finalmente estar livre do pesadelo de Kafka e reembolsado dos meus 700 reais.

22 fevereiro 2010

males da província

Gostar de boa literatura ou de bons filmes – a música nem tanto – é um sentimento que numa cidade como a nossa quase não temos com quem compartilhar. Sofremos uma espécie de mal que é comum na província. Padecemos de uma atroz mediocridade. Parece que as limitadas dimensões geográficas do lugar (da província) de algum modo influenciam nossa visão de mundo e nossos gostos, mesmo nesses tempos de internet e outras possibilidades de se ir além da linha do bojador. Não se vê ninguém discutindo um bom livro ou um bom filme. Na maioria dos casos, o comentário feito por algum “luminar” recai sempre sobre obras de auto-ajuda ou o novo filme de Hollywood. O luminar de que eu falo não é ninguém saído do povo, mas da classe média. O que é pior. Há exceções, sem dúvida nenhuma, mas a maioria dos profissionais liberais como médicos, advogados ou professores, além de jornalistas, empresários ou funcionários públicos viventes da província levam muito a sério esse negócio de ser provinciano e se limitam a um gosto médio de consumo tão medíocre que faz parecer patético – embora bem intencionado – nosso adjetivo mais antigo de Suíça Pernambucana. Além da altitude e do clima frio o que tem nossa cidade diferente de uma província?

29 janeiro 2010

metalinguagem

Provavelmente eu acabei conhecendo a literatura da Argentina depois de ler Borges. No século XX Jorge Luis Borges é uma figura central na literatura, influenciou escritores, diretores de cinema e artistas dos quadrinhos, como Neil Gaiman, por exemplo. Conhecer Borges, portanto, é o que acontece, mais cedo ou mais tarde, com quem gosta de livros. Há uma coisa, entretanto, entre os argentinos e outros escritores de língua espanhola do século XX que acabaram por me chamar a atenção, a mim que de cara simpatizei com aquele axioma de Borges em que ele se declara mais orgulhoso dos livros que leu do que daqueles que escreveu. E essa coisa não é outra senão fazer da própria literatura o tema central de seus contos e romances.

Ricardo Piglia, autor de Respiração Artificial, romance que conta a história de uma busca que inclui a reconstrução da biografia de um possível traidor e um encontro misterioso entre Kafka e Hitler; o catalão Enrique Vila-Matas que a Cosac vem publicando no Brasil desde 2004, autor de Batlerby e Companhia, espécie de romance-relato sobre escritores que por causa da consciência crítica não escreveram ou escreveram um livro ou dois e depois disso renunciaram à escrita e o chileno Roberto Bolaño, morto em 2003 e que vem, desde a década de 90 se notabilizando no mundo como um grande escritor, autor póstumo que nos deixou entre outros Noturno do Chile, A Pista de Gelo, Os detetives Selvagens e Amuleto, narrativa em primeira pessoa por Auxilio Lacouture, artista rippie e louca que se autodeclara mãe de todos os poetas de México, são alguns dos escritores que se encaixam no perfil predito por mim..

Em todos os livros não raro o protagonista é um escritor, às vezes alter ego, às vezes um romancista ou poeta fictício ou histórico, mas todos considerando a vida direta ou indiretamente por trás de uma máquina de escrever.

Tais escritores são alguns dos melhores em língua espanhola (há outros) e quase todos fizeram da própria literatura e suas implicações que ultrapassam o meramente metalingüístico o tema maior de seus escritos. O que é isto?, uma tendência, algo que mais tarde possa ajudar os pesquisadores a identificar alguma coisa próxima de um estilo de época ou uma reação aos piores prognósticos daqueles que vaticinam o fim da literatura? Alguém dirá que talvez não seja nada disso, que talvez não passe da influência de Borges (leitor). Em todo caso não deixa de ser curioso. E fica aí uma boa dica para aqueles que ainda não conheceram os autores citados, sem dúvida uma boa representação do que se faz hoje com a língua de Cervantes.

20 janeiro 2010

história do pranto

Ainda na praia, eu li um cara que tem dado o que falar desde 2003, quando publicou O Passado, livro que virou filme dirigido por Hector Babenco. História do Pranto só tem 85 páginas, é uma novela e nos revela outros pormenores da história da esquerda na Argentina dos anos 1970. Os fatos não são narrados como registro jornalístico, Alan Pauls – é o nome do escritor – vai na contramão da literatura à lá Truman Capote. Ricardo Piglia, no prefácio, diz que o autor da História do Pranto é uma espécie de escritor em extinção porque valoriza o estilo – um exemplo entre nós seria Machado de Assis e Guimarães Rosa, de fato escritores em extinção. Numa entrevista à Bravo, Alan Pauls conta que o livro é uma resposta ou reação contra aqueles, na Argentina, que exercem uma espécie de monopólio da história e acham que só quem viveu aquele tempo – da ditadura – é que tem o direito de falar dele. Outro aspecto do livro é a tentativa de desmistificar a cultura da vitimização. Pauls é de opinião que os argentinos acreditam que ser vítima é ser intenso. Algo que também permeia o universo do tango.

O livro não exige o uso de dicionários e, portanto não está desqualificado para ser lido na praia, mas exige alguma atenção do leitor que às vezes percorre uma página inteira e não sai de dentro da mesma frase. São as frases-droga, como chama o autor, que tem a função de arrastar o leitor e narcotizá-lo.

14 janeiro 2010

na praia

Em janeiro o negócio é sair de férias e de preferência se mandar para o litoral. Seria uma ótima opção não fosse um inconveniente. É que com você também se mandam os imbecis. Minha idéia de praia é o seguinte: uma cadeira confortável onde a gente pode se sentar e se deitar quando uma onda de preguiça tomar conta do corpo, principalmente depois de alguns goles a mais de cerveja. Pois bem, antes da preguiça e do exagero alcoólico, nosso corpo ainda se mantém sentado e nós seguramos na mão um bom livro. Não precisa ser nada difícil, Euclides da Cunha não é uma boa idéia nem o autor de Balmaceda tampouco; a preocupação com dicionários e lápis com a ponta que precisa ser refeita de vez em quando não combina muito com a tal cadeira e os pés – descalços – metidos na areia. Eu recomendo um livro que dispense a consulta ao dicionário ou anotações no rodapé, um livro que não subestime nossa inteligência, mas que não superestime tampouco. Um livro que o marulho das ondas não atrapalhe sua leitura, no máximo possa servir de música ao fundo que logo esquecemos tão vidrados ficamos. Eu penso num clássico da literatura noir como O Falcão Maltês de Hammett, por exemplo. É, o Falcão é uma ótima idéia. Um desses livros que provoca prazer e que, talvez por isso e por dispensar dicionários, o Fernando Sabino tão injustamente taxou de descartáveis. Você, sua cadeira dobrável e o Falcão. No mais a areia e o mar rugindo.

Até que a gente acorda do sonho e se depara com o pesadelo. Há uma infinidade de barracas com um monte de mesinhas distribuídas segundo uma convenção que respeita os direitos territoriais de cada barraqueiro. Em cima da mesa mais uma cerveja enquanto milhares de vasilhames vazios se amontoam por toda parte. Em torno da mesa os tais imbecis. Mais tarde eles vão se vangloriar da enorme quantidade de álcool que conseguiram ingerir. Agora, enquanto pedem mais uma, meditam sobre coisa nenhuma enquanto fitam descarados mais uma bunda. Mas o pior não é isso. Não é a cerveja nem fitar e se deliciar diante de uma bunda. O pior é a música que esses senhores e senhoras não param de ouvir do momento que se sentam até o momento quando vão embora. Eu não preciso dá nome aos porcos – são porcos os cantores e cantoras das tais bandas – de forro, axé e mais o diabo com todos os seus dotes menos o da música. Não é possível conversar, o volume muito alto exige que você grite. No início todo mundo ainda consegue gritar uma vez e outra, mas não é possível fazer isso por horas, mesmo a melhor conversa soçobra, vencida pelo barulho e o cansaço das gargantas que agora, impedidas de falar, prestam-se somente ao consumo de álcool – e deve ser esta a razão por que o barraqueiro investe tanto no som da barraca.

Quem sonha poder nas férias ler o seu Hammett sentado na sua cadeira dobrável tem que fazer como eu: evite as aglomerações, corra de São José e Tamandaré, procure as praias desertas, mesmo que o consumo de gasolina ultrapasse o orçamento. Amanhã eu vou pra Tambaba. É verdade que todos tiram a roupa por lá, e isso pode distrair meu Falcão, mas a moça do centro turístico me garantiu uma coisa, disse que o som – o senhor pode confiar – é proibido nas barracas.

11 janeiro 2010

Viagem Vertical

Os romances de Vila-Matas são oportunidades para conversar sobre livros e escritores: O Mal de Montano é assim e Batlerby e companhia também. Ele me lembra Borges, não o escritor – se é que podemos separar as duas figuras –, mas o leitor. Borges disse certa vez que se sentia capaz de passar 24 horas falando sobre literatura. Seus livros atestam isso. Neles o tema mais recorrente é o do mundo representado pela biblioteca. Os contos são ensaios sobre livros. São famosos seus prólogos. Vila-Matas se identifica com Borges, certamente é seu leitor da vida inteira e assim como o escritor argentino ele também se sente atraído pelos livros.

Acabei de ler Viagem Vertical, publicado aqui no Brasil em 2004 pela Cosac Naify. Li depois de todos os outros, dos já mencionados e mais Paris não tem fim e Suicídios Exemplares. Adiei a leitura de Viagem Vertical porque diferente dos outros este não me parecia trazer o tema da literatura, do qual gosto muito, mas uma experiência diferente: o do homem em crise, algo muito próximo, pensei, de dois livros que li no final do ano passado e sobre os quais escrevi aqui no blog: Homem Comum de Philip Roth e A Casa das belas adormecidas de Kawabata – sem o apelo erótico deste último. Livros que tratam da velhice, morte e falta de sentido da vida.

De fato. Até a página 179 – de um total de 252 – o leitor deduz que Viagem Vertical é uma história contada em terceira pessoa que tem como protagonista Mayol – um velho aposentado, dono de uma empresa de seguros que vê a vida vir abaixo no dia em que a mulher lhe faz um estranho pedido. Ele vai desembarcar na Madeira, em Portugal, sem rumo e sem tino, onde encontra por acaso o sobrinho a quem não via fazia anos e que como o tio, também passa por uma crise. Dono de uma solidão que não consegue conter no peito, a personagem ver-se na sua viagem vertical.

Ao que tudo indica Mayol levava uma vida normal, estava aposentado, havia passado a empresa para o comando do primogênito – de quem se orgulhava – e se distraia do fim apostando na convicção de que deixava as coisas em ordem e se sua vida chegava nos últimos momentos, ao menos fez sentido, afinal construiu algo de sólido como a família e a empresa milionária. Em outras palavras, o fim não era encarado com perplexidade, mas com conformismo e parcimônia.

Algo, entretanto, acontece que vai tirar o ancião de tempo. O pedido absurdo da mulher é que ele desapareça da vida dela. A esse choque vem juntar-se a decepção com o filho mais velho que se diz cansado da empresa e do casamento e pior que isso; o ressentimento que nutre pelo filho Julián, um pintor excêntrico que se julga o próprio Toulouse-Lautrec vivendo na Paris boêmia dos anos vinte. Esse filho caçula e solteiro de 42 anos é um imbecil da cabeça aos pés apesar de ser homem culto e instruído. Num episódio recente, recordado por Mayol enquanto caminha pelas tumbas de um cemitério, chama o pai de inculto. Ora, o complexo de inferioridade por ter freqüentado a escola só até os catorze anos é uma frustração que Mayol carrega. Recordar-se da declaração do filho no momento de crise desencadeada pela expulsão da mulher só piora as coisas e o faz se sentir como a última das criaturas.

Na página 179 nos surpreendemos com o narrador. Não é onisciente, não é Vila-Matas, mas o gerente do hotel onde está hospedado Mayol na Madeira. Esse gerente se interessa pela história do velho e vê nela a oportunidade de escrever seu primeiro romance, apresenta o hospede a uma espécie de clube literário e a história do homem em crise acaba incluindo conversas sobre o livro – mesmo os que Mayol disse que leu sem ter lido – e nós, leitores de Vila-Matas, reencontramos o autor que não consegue separar a vida da literatura.