10 março 2012

Liberdade

Há muita coisa que se pode dizer de Liberdade, romance de Jonathan Franzen. Eu poderia me dirigir aos leitores pragmáticos, por exemplo, aquele do tipo que não perde seu tempo com uma leitura que não seja útil. O tipo de leitor a quem Oscar Wilde reservaria um pouco de seu desdém, o tipo de leitor interessado no quanto de conhecimento imediato um livro pode oferecer, desinteressado do prazer ou enlevo que a arte proporciona, e que passa todo o seu tempo mergulhado em ignorância depois de formular um conceito que há de lhe valer para o resto da vida, a saber: a de que romance é coisa para moças (no sentido equivocado que as sociedades conservadoras relegaram às moças de família e seu lugar de leitoras de romances água com açúcar, moral cristã e outras tolices indignas de atenção intelectual).

Lendo a biografia do jovem Marx descobrimos um leitor apaixonado por Balzac, e foi no autor da Comédia Humana que Marx se deu conta dos mecanismos da sociedade francesa daquele tempo. A literatura do século XIX estava preocupada em apreender a realidade, desmistificar preconceitos e corrigir injustiças. Alguns escritores fizeram disso seu objetivo enquanto faziam arte: Balzac, Tolstoi, Stendhal, são alguns entre outros que aliaram o estudo da realidade de seu tempo com o máximo de rigor artístico, e por causa disso escreveram grandes livros.

Personagens que são verdadeiras invenções do humano; tramas envolvendo questões comezinhas e a reinvenção do herói que definitivamente troca Aquiles pelo mais reles dos mortais e um final que aponta para a comédia que representamos num mundo caótico e doente por causa das nossas escolhas ao longo de um tempo curto demais para percebermos o quanto de frágeis e confusos somos e o quanto nossa vida, não obstante toda complexidade, é carente de sentido. Esses critérios – vamos chamar de critérios – ainda funcionam na hora de escrever um grande romance e é isso o que Franzen, herdeiro dessa tradição dos grandes romancistas, lança mão para compor o seu belíssimo Liberdade.

Eu falava dos leitores pragmáticos, acho que até mesmo eles vão gostar do romance e talvez até mudem seu conceito de leitura para moças. Liberdade nos dá conta de muitas questões, algumas das quais só encontraríamos em ensaios jornalísticos comprometidos com a verdade. Assim como os romances de Balzac deram ao jovem Marx uma idéia muito precisa da sociedade francesa de seu tempo e por esse tanto do mundo, Franzen nos faz divisar uma América do Norte afundada na própria merda que as disputas entre Democratas e Republicanos fizeram chegar. Uma América a quem a recessão é só mais um dos problemas. Uma América no impasse de liberais e conservadores; liberais demais a ponto de temerem qualquer semelhança com ditadores chineses e sua política assustadora de controle da natalidade e por isso indiferentes às questões relativas ao aumento da população e perigo para o futuro sustentável do planeta e conservadores demais incapazes de perceber o quanto a religião lhes embota a vista e lhes impõe uma visão tacanha do mundo.

Bush e seus asseclas das empresas corruptas de venda de armas e exploração do petróleo, a imoralidade subjacente de tal comercio, o engodo para legitimar uma guerra (do Iraque) que num certo sentido se baseou no dualismo de que tanto gostam os fundamentalistas cristãos da América que em tudo enxergam a guerra entre o bem e o mal incapazes de perceber que não é clara a divisão dos papeis. Essas e outras questões tão bem desenvolvidas no livro por certo interessarão aos leitores sisudos, os leitores de jornal, os leitores interessados das questões fundamentais de seu tempo.

Mas o livro, devo advertir, não é importante porque somente trate dessas questões, porque nos garanta uma visão da realidade. Nada disso. Ele é importante – pelo menos pra mim – porque ali nos encontramos em Walter, Patty ou Katz e no quanto suas vidas são numa certa medida a nossa vida, a vida do leitor de quem já se disse que é narcisista e gosta mais do livro em que se vê representado. Porque no fundo é essa a função da grande arte, uma função que não precisa ser anunciada, mas que funciona. Um livro, quero dizer: um romance não é bom porque seja capaz de compor um painel da sociedade ou causar entretenimento, mas funciona na medida em que também nos reinventa como humanos e terminamos sua leitura nos sentindo outra pessoa, sentindo mesmo uma sensação de que a leitura daquelas 600 páginas de algum modo contribuíram para que nos sentíssemos melhores seres humanos.

É claro que não nos tornamos melhores, mas a ilusão é que conta.

31 janeiro 2012

Sofrimento, Teodicéia e malogro

Como acreditar numa verdade que não resiste ao tempo? Ainda mais uma verdade com pretensão universal? Mas o fato é que não resiste e à medida que o resultado do trabalho de pensadores e cientistas se impõe e aparece um novo espírito de época vai ocorrendo por parte dos conservadores uma tentativa desesperada de acomodar as coisas. E vão aparecendo as justificativas (a teodicéia é uma delas) surgem argumentos do tipo: “é preciso contextualizar” e alguns jargões são logo construídos e repetidos de boca em boca de padres e pastores evangélicos.

Uma questão interessante a esse respeito é a idéia de sofrimento e como ela foi tratada pelos autores da bíblia.

Os profetas como Amós, Jeremias ou Isaias tentaram justificar o sofrimento pelo qual passava seu povo, o povo escolhido, falando de desobediência – e é interessante notar que é desobediência e não pecado, algo sobre o que tratarei mais adiante. Sofria o povo porque insistia em desobedecer e por isso recaia sobre ele a fúria de deus. Deus é bom e tudo pode, mas mesmo sua paciência tem limite.

Com o Pentateuco ou Torá, composto pelos primeiros cinco livros, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, ficamos sabendo da origem do mundo e da vida e depois acompanhamos o povo escolhido de deus, os judeus, a aliança, ida para o Egito acossado pela fome, uma relativa prosperidade naquela terra estrangeira e sua escravização pelo faraó duas gerações depois de Abraão. Depois disso é preciso que um líder apareça para libertar o povo e é o que faz Moisés depois de ser arauto das pragas de Javé contra os egípcios. Ele conduz mar vermelho adentro seu povo para o grande malogro que é a terra prometida.

Uma coisa curiosa e que passa despercebida é que a tal terra prometida (Canaã) já era habitada por povos ferozes e que para obter a posse da terra se fazia necessário lutar. Deus não estava familiarizado com a burocracia dos cartórios. Não conhecia os tramites legais, é por isso que os portugueses que são sábios e aprendem com a experiência alheia, logo que atracaram no paraíso abaixo da linha do equador lavraram a escritura e garantiram a posse legal das novas terras descobertas (os índios, como deus, também não manjavam esse negócio de cartório).

Era preciso lutar e o povo reluta, coisa que não é bem recebida por Javé. Não interessava que o povo estivesse extenuado, afinal fora liberto fazia pouco do trabalho escravo, é de se supor, portanto, que não esbanjasse saúde, mas Javé não se interessa por detalhes, seu povo desobedecia fazendo corpo mole e isso não era coisa que ele pudesse tolerar. Não Javé. E o que acontece em seguida todo mundo sabe e faz vista grossa; o povo amargou 40 anos no deserto, andando para lugar nenhum até que toda aquela geração de homens podres do trabalho egípcio morresse.

Como se vê, nunca foi fácil ser judeu, a tal terra prometida quase nunca lhes pertenceu de verdade, Israel (a Palestina para ser mais exato) por séculos foi sempre uma terra ocupada por estrangeiros; centenas de gerações de judeus viveram e morreram sob o jugo de outros povos: Assírios, babilônios, persas, gregos e romanos, entre outros, durante muito tempo foram os verdadeiros donos da terra prometida por deus.

Numa época muito anterior ao holocausto, certamente os judeus já se perguntavam por que, sendo eles o povo escolhido e apadrinhado por deus, sofriam tantos reveses. A resposta estava na ponta da língua dos profetas: sofria porque merecia já que é tão teimoso em desobedecer. Tudo bem, o argumento parece que convencia – a pelo menos uma boa parcela deles – mas aconteceu algo que os profetas não previram. Quando Antíoco IV assumiu o trono em 175 a.C. ( 1 Macabeus) e perseguiu os judeus forçando-os a abandonar suas crenças, proibindo o culto a Javé e sentenciando à morte os pais que fizessem circuncidar seus filhos entre outras coisas, a explicação dos profetas já não convencia nem os mais abnegados religiosos. Antes o povo sofria porque desobedecia a Lei de Javé e agora estava sofrendo justamente porque obedecia ou queria obedecer. E então? Como explicar o sofrimento?

Fácil. Uma nova estratégia foi montada e passaram a surgir os autores apocalípticos. Daniel foi o primeiro. Sobre essa questão eu recomendo ao leitor interessado por mais informação o muito bom O Problema com Deus, de Bart D. Ehrman, ex-pastor batista que recobrou a razão quando perdeu a fé.

A partir de agora é preciso criar novos conceitos e o mais importante deles é a Dualidade. Ehrman ainda cita Pessimismo (o mundo é governado pelo mal – com a aquiescência de deus – e nada que possamos fazer pode mudar isso); Castigo (foi deus quem criou este mundo e é ele quem vai redimi-lo castigando com o inferno aqueles que merecem) e Iminência (em breve deus retornará, o diabo vai se recolher à sua insignificância e os bons e justos viverão sob os auspícios de deus todo poderoso que vai governar como um rei).

É interessante notar que nos primeiros livros da bíblia como o Pentateuco, por exemplo, não existe a figura de satanás como nós o conhecemos hoje. A serpente que tenta Eva não passa de uma serpente com a diferença que se expressava na mesma língua da primeira mulher e possuía a incrível habilidade de andar sobre duas pernas. Quando sofre a punição de Javé, perde as pernas e passa a rastejar sobre o próprio ventre. Não é ao demônio a quem deus se dirige, mas à serpente. Ainda não existe o conceito universal de dualidade que trouxe com ele a idéia de pecado. O universo não é dividido entre duas forças que se opõem; de um lado deus pesando muitos quilos que representa o bem e do outro o famigerado e magricela satanás representando o mal.

Isso é tão certo que num dos livros poéticos e sapienciais, Jó, satanás aparece como um conselheiro de deus, um de seus filhos que tem livre acesso ao céu onde é recebido com honra e ocupa uma determinada função.

E agora cito o interessante questionamento de Epicuro:

"Deus está disposto a evitar o mal, mas não é capaz? Então ele é impotente.
Ele é capaz, mas não está disposto? Então ele é malévolo.
Ele é igualmente capaz e disposto? Por que, então, há mal no mundo?"

Entendendo o mal como causa do sofrimento, percebemos que teve deus dois advogados, ou tipos de advogados para sua defesa. Primeiro os profetas que entendiam o sofrimento como forma escolhida por deus de castigar a desobediência à sua Lei. Quando essa justificativa ou “verdade” se esgotou, outros profetas com novos conceitos apareceram para justificar a impotência de deus e garantir a fé dos fieis. O Apocalipse é aquela que se mantém até hoje. Há sofrimento porque outra força se opera na terra e esta força se opõe a deus, no meio está o homem e o livre arbítrio. Por causa do livre arbítrio deus não pode fazer nada enquanto se endurece ainda mais as forças do mal. Mas um dia (e todos os profetas do apocalipse são unânimes em dizer que em breve, desde Daniel a Paulo passando por Jesus e o Batista) o reino de deus será estabelecido entre os homens, os maus serão punidos e os justos recompensados.

Não há nenhuma dúvida de que os profetas da bíblia falavam para seus contemporâneos quando previam o Apocalipse e mesmo Jesus deixa isso muito claro em Marcos 9,1 “em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o reino de deus, chegando com poder.”

Diante disso só nos resta duas alternativas quanto ao sofrimento, ou esperamos sentados o apocalipse ou pusemos mãos à obra e tentamos fazer alguma coisa para tornar o mundo melhor.