15 fevereiro 2013

O destino das metáforas

A voz em primeira pessoa, a sutileza, o transcorrer do tempo, a morte na metáfora da máquina do tempo. Daniel, o amigo, o que ficou para trás e espera a máquina é a história da transcendência que não se realiza. Nesse conto que empresta título ao livro, assim como nos outros – e para mim uma das confirmações de sua unidade – o plano de narração reflete outros planos em que a súmula dos efeitos da escritura de Sidney Rocha – todos em pró do não dito – faz a diferença entre o limite do real e sua fabulação.

O destino das metáforas é transcender a realidade que se divisa na historia do garoto cego que tropeça no gato de três patas (gato para quem recairá a fúria) e tomba da escadaria para a morte ou no pai que mata os filhos arremessando-os da ponte como se pequenas aves fossem e precisassem do incentivo paterno para voar. Também no bebê de passos trôpegos que morde e arranca o mamilo (a lua) da mãe numa correspondência genial com os passos trôpegos de Armstrong vistos na TV. Esses são resumos mal feitos de alguns dos contos do livro. Nele a realidade chã é transmutada para outra dimensão, a dimensão poética que refaz o teatro em que se desenrola o drama humano.

Em todos os contos nota-se uma rigorosa medida, coisa de matemático, que milimetricamente conduz o leitor em cada frase. Tudo parece ser calculado, e do traçado disso surge diante do leitor satisfeito uma prosa rigorosa e vigorosa; parábolas de tensão e linguagem sem estratégia nenhuma de efeitos vazios (tão comum nesses tempos pós-modernos, quando se tornou tão difícil ser escritor, e resta o desespero e uma busca quase vã pela originalidade) Sidney Rocha, em O destino das metáforas, não se confunde com esse tipo de prestidigitador canhestro.

Os contos apresentam camadas, talvez outro nome para a história secreta de Piglia, daí, talvez, a sensação de que você leu uma narrativa que deixa na lembrança a certeza de que não foi apenas aquele número de página, indicada no sumário, não aquele número – os contos são curtos, alguns curtíssimos – a responsável em conter todo o jorro da narrativa. A realidade explicitada não basta, existe alguma coisa a mais que se esconde, se insinua, algo que você leitor quase nunca sabe o que é, mas, desconfiado, alimenta suspeitas. Uma suspeita de que há algo a mais (que o noticiário deu conta superficialmente) e que não foi dito a respeito do sujeito encontrado morto numa lata de lixo.

Há muito o que dizer do conjunto dos contos. Em Castilho Hernandez, por exemplo, um dos meus favoritos, a perda da identidade e certa esquizofrenia da personagem da o tom e Sidney se sai muito bem na sua contribuição para a galeria de contos (em que se destacam Poe e Borges) que exploram a temática do Outro. A escritura poliédrica permitiu-lhe explorar num mesmo conto, como A Vida e A Morte de John Lennon, vários temas como o fim da infância (numa bonita metáfora que nos lembra Baudelaire, “o fim da infância, a cidade deixada pra trás...” ), a reinvenção de Sísifo na necessidade de andar em círculo, a felicidade e a morte vistas ao mesmo tempo num beijo, o erotismo e a perda do vigor, o inacessível objeto de desejo, a senilidade e a morte. Tudo isso num só conto, milimetricamente construído e de uma unidade a toda prova.

Mas nem só do não dito ou de uma narrativa bem estruturada vive O destino das metáforas, nele encontramos o criador de clichês, que ainda não são clichês no momento em que são forjados, só quando passam a ser tomados de empréstimo por outros escritores. Nos contos há uma riqueza de construções que trazem a marca da originalidade; uma obsessão dos nossos tempos, como eu já disse, quando se tornou impossível ser original porque chegamos tarde, diria Harold Bloom. Num único parágrafo o leitor se depara com construções como: “Nunca trocaram palavras, é verdade, mas deu-lhe a distância como pedagogia, e como madrinha a própria esposa, vejam, e esta, nos Natais ia lá e lhe sondava as necessidades.” e “A morte lhe deu feição de sinistro monumento.” De fato o automatismo da escrita de Sidney inventa frases e suas conexões com o mundo real traduz para o leitor um tanto de beleza que é poesia sem deixar de ser prosa.

Sobre seus mestres mudos, consigo localizar Borges e Cortazar. Não são reflexos no espelho de Sidney, são companheiros das mesmas inquietações. Com eles aprendeu, ao seu modo, reinventar o uso das metáforas, a história dentro da história, a arte do não dito e a exploração do insólito – talvez com menor recorrência, apesar de tão comum na literatura desde “Kafka e seus precursores” – como no conto Magnetismo, quando o autor transcende o contexto da experiência cotidiana com o menino que era um ímã e atraía os metais, engolindo tudo; o médico mesmerista e a Torre de Paris, que é logo substituída para se conservar a plasticidade da realidade. Além de todos esses elementos, que é o melhor que encontramos na literatura contemporânea e emprestam ao livro sofisticação, Sidney conservou a narrativa, a história, não caiu nas armadilhas (dos desesperados por originalidade) das pirotecnias e hermetismos áridos.

Também encontrei nos contos uma desesperança, Sidney deve desconfiar muito do gênero humano, ele é um pessimista, no melhor sentido, como Saramago foi, mas é fato que o sofrimento dos homens e mulheres é combustível do qual se alimenta o escritor, talvez porque deseje expurgá-lo, não sei, ele não é o deus dos hebreus, não é sádico, se importa com o sofrimento que aflige os humanos, sem dúvida, e por isso precisa fazer algo, e como seria anacrônico demais colocar uma boina e ir viver na selva amazônica treinando guerrilheiros, ele escreve e suas criaturas, como Atlas, carregam nas costas um peso imensurável, daí a recorrência da morte e da loucura, mas não há nada de casmurro nos contos, há humor e delicadeza, o tipo de humor que nos faz pensar e a delicadeza que nos desconcerta. O destino das metáforas, em suma, é um desses livros que exige um leitor que seja capaz de encarar a literatura mais do que mero entretenimento.