12 março 2010

sobre o plágio insosso da realidade

Num dos contos de Detalhes de um Pôr-do-sol, Nabokov – ou a personagem de Passageiro – compara a página de literatura com a vida e entre uma e outra – em termos de complexidade e sucessão de eventos absolutamente não condicionados a uma idéia de ordem e concisão artística – lamenta a subordinação do artista que necessita modificar tais elementos que a realidade fornece para somente assim alcançar “uma espécie de harmonia convencional e concisão artística”.

No conto, a personagem – um escritor –, narra para outra personagem – um crítico – uma história por ele vivenciada. Nada de mais. Um episódio dos mais simples. Está num trem e faz uma viagem noturna. Numa das paradas ele acorda – pois está deitado na cama beliche – e percebe que há um novo passageiro na cabine. O sujeito está sentado na cama de cima e seus pés balançam enquanto se prepara para dormir. O escritor acorda com o movimento que faz os pés do outro e fita aqueles membros. Na verdade se detém e na descrição que faz enfatiza algumas particularidades como o fato de serem repelentes. Por fim os pés desaparecem debaixo das cobertas e seu dono passa a reproduzir um choro ou grunhido que se estende – com uma pequena interrupção aqui e acolá – durante a noite. O escritor, desperto, não tem alternativa senão acompanhar o lamento do outro, enternecer-se e se angustiar tentando imaginar sua origem. A noite é longa e o choro parece não ter fim, mas num dado momento o escritor é vencido pelo sono. Na manhã seguinte é despertado pelo camareiro. Levanta-se e nota que seu vizinho deixou de chorar – ninguém sabe a que altura da noite – e dorme profundamente enrolado dos pés à cabeça. O escritor, contando a história ao crítico, parece querer alimentar certo mistério em torno da identidade daquele homem que dorme. Mas o deixa para trás e ganha o corredor no momento em que o trem pára numa estação onde um grupo de policiais entra chamando a atenção de todos. Os homens da lei estão procurando por um assassino que matou a mulher adultera e que, ao que tudo indica, se encontra naquele trem. Eles revistam a todos e se dirigem para a cabine onde dorme o homem que passou a noite chorando.

Está tudo esclarecido, portanto, e o leitor esperto já adivinhou: o choro daquele homem durante a noite é o resultado de uma alma que sofre as dores de consciência próprias de quem cometeu um ato ignominioso. Mas o que se segue, entretanto, é o que a vida oferece e não a arte. O homem mostra os documentos e logo fica esclarecido que não se trata do assassino. Decepcionante?, talvez, mas são as tramas da vida, bem mais complexas, caóticas e reticentes do que aquelas oferecidas pelo escritor que usa “truques pessoais para dar sabor a nossos plágios insossos” da realidade.

Sem dúvida nenhuma é uma crítica aos escritores que na narrativa “punem a virtude no começo e o vício no fim”, e nesse grupo podemos incluir todos os autores de novela e romances campeões de venda feitos para agradar ao público. Nabokov faz a defesa do Realismo. O escritor, personagem do conto, deseja ser o autor de Lolita que nos chocou – não por uma mera questão de pudicícia – mas por nos contar uma história que se desenvolve a partir de anotações do diário de um pedófilo – com todos os truques para parecer real – e seu desejo abjeto por uma menina de 12 anos. Não há uma tentativa de parecer agradável, H.H. é um monstro, sem dúvida, e se simpatizamos com ele é porque sua estranheza não é tanta que o diferencie de nós mesmos. Nisso reside umas das preocupações de Nabokov: a realidade como é e não como gostaríamos que fosse. Em alguns momentos a narrativa de Lolita pode parecer enfadonha para um leitor convencional, mas na verdade ela revela a intenção do autor de impor à prosa um ritmo que imite a própria vida. Não há intenção de agradar – não é para isso que se presta o romance – mas para desconcertar o leitor e fazê-lo enxergar a si mesmo, desnudo do desejo de ilusão.

09 março 2010

Moisés, exemplo de intolerância religiosa

Os cristãos destruíram deuses em nome de seu deus soberano. O deus cristão é o único deus, mas os sacerdotes de batina enxergavam nos ídolos pagãos da Grécia ao México uma ameaça, coisa no mínimo curiosa, já que os pobres ídolos nunca passaram disso, de formas inanimadas de barro não transcendental. Quando leio o Velho Testamento noto que os padres tiveram em Moisés um bom exemplo de intolerância religiosa. O episódio é conhecido por todos: Moisés é advertido por Deus que a turma lá em baixo está aprontando. O velho patriarca levando as tábuas dos dez mandamentos – aquilo devia pesar pra burro – se apressa em descer o Monte Sinai e de fato encontra seu povo dançando na maior alegria diante do bezerro de ouro que foi moldado por Aarão – irmão e profeta de Moisés escolhido pelo próprio Iahweh – que usa sua arte para atender as aspirações do povo. Moisés, entretanto, não gosta nem um pouco do que vê; presa de uma fúria que só encontrará precedentes em Átila e no Incrível Hulk, faz pedacinhos do bezerro de ouro.

Nessa passagem bíblica há dois pontos interessantes e dignos de nota. O primeiro reforça minhas desconfianças nos fatos narrados. Não consigo entender como o mesmo povo que presenciou todos os prodígios realizados por Moisés em nome do Deus; vocês devem se lembrar de alguns como a vara transformada em serpente – não confundir com nenhum duplo sentido – , a água transformada em sangue, rios poluídos e peixes mortos e o desespero dos ambientalistas, as pragas de rãs, dos mosquitos e moscas e a peste que matou os animais dos egípcios, inocentes ou não. As úlceras, a chuva de pedras – não confundir com meteoros –, mais pragas de gafanhotos e finalmente o mais prodigioso feito contra os egípcios: a morte de todos os primogênitos. Segundo conta o livro sagrado, ninguém foi poupado, nem o mais pobre egípcio, nem mesmo aquele que morava fora da cidade e era contrário à política do faraó. Este, como todos os outros, sofreu a perda irreparável do filho. Aliás, nem o gado foi poupado, toda vaca e todo boi perdeu seu primeiro filhote – muito tempo depois um romano vai tentar um feito parecido, mas não vai chegar nem perto –, e todos esses prodígios, além do Mar Vermelho que se tornou terra seca para passagem do povo, tudo isso e outros “milagres” não vão surtir efeito sobre a fé dos israelitas em Iahweh. Cansados e impacientes com Moisés – que era péssimo escrivão – e por isso se demorava escrevendo nas tábuas os dez mandamentos, vão se dirigir a Aarão e solicitar

Vamos, faze-nos um deus que vá à nossa frente, porque a esse Moisés, a esse homem que nos fez subir da terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu. (Êxodos 32,1)

O segundo ponto é, na minha opinião, a história das religiões que está bem representada na fúria de Moisés quando desce do Monte Sinai e destrói o ídolo de ouro. Acho que as religiões, principalmente as de tradição judaico-cristã e islâmica, não têm feito outra coisa senão dividir os homens. Há uma ética, por certo, e dela a religião se aproveita e se sente justificada. De fato o Judaísmo, Cristianismo ou Islamismo não manda ninguém ser mau, e entre as oposições antitéticas, é preferível o bem ao mal, a virtude ao vício, a bondade e não a crueldade. Mas há muita hipocrisia e o convívio é apenas tolerado. É fácil notar isso. Temos desde exemplos os mais radicais como aqueles que nos oferecem judeus e palestinos que não fazem uma distinção muito clara entre as coisas de interesse do Estado e da Religião, e exemplos menos radicais – dependendo do lugar – como nos dão católicos e protestantes que até convivem pacificamente, mas no íntimo estão certos do quanto estão errados os outros em sua interpretação do Cristo.

08 março 2010

outro pesadelo de Kafka

Desde quarta feira que tento resolver uma pendência com o Banco Real. Desde quarta e ainda não consegui. O problema é simples: O Banco descontou sem aviso prévio a bagatela de 700 reais da minha conta. Não entendi e como sou desorganizado imaginei que alguma coisa me escapara, talvez um cheque que não anotei ou uma compra irresponsável – que tratei de esquecer – usando o Visa Elétron. Mas não foi nada disso, e tudo se esclareceu: O Banco descontou quatro parcelas de um empréstimo que eu – honrado que sou – já havia quitado como manda um bom acordo entre cavalheiros. Desde então venho tentando resolver o entrave que cada vez mais ganha contornos kafkianos.

O gerente me esclareceu tudo, não pediu desculpas e apenas me informou que eu deveria me dirigir ao setor onde meu problema seria resolvido. Não era ali, ele disse. Mas com o pessoal do empréstimo consignado. Acontece que esse tal setor está congestionado já faz dias como provavelmente não esteve nem durante o Bug do Milênio e por isso todos os dias tem sido a mesma penitência: Chego às 13 horas – é o horário que posso chegar –, dirijo-me ao setor de consignado, resignado retiro minha ficha e me sento na cadeira lendo uma coletânea de contos de horror – aliás, bem apropriado – até o momento quando alguém cerimonioso me informa que devo voltar amanhã, já que o sistema – por mais incrível que pareça – saiu do ar.

No primeiro dia peguei uma ficha de atendimento número 49 e fiquei deveras desolado quando comparei com o número na placa luminosa. Faltavam duas horas para se encerrar o expediente bancário e eu tinha 44 pessoas na minha frente. No segundo dia a ficha trazia o número 52 e as coisas só pioraram já que sexta feira o número pulou para 58. Hoje, segunda feira, fiquei quase feliz fitando um simpático 55.

Quando fui informado que o sistema saiu do ar – durante quatro dias consecutivos o destino nunca foi tão repetitivo – faltavam dez minutos para as cinco horas e nisso tudo intui uma simbologia dos números. A moça me deu uma ficha de número 6 e foi a primeira vez que peguei um número contendo apenas um dígito. Naquele meio tempo achei que só existissem dezenas. Amanhã estarei lá com minha ficha número 6. Na numerologia o seis significa liberdade. Não ambiciono outra coisa, finalmente estar livre do pesadelo de Kafka e reembolsado dos meus 700 reais.