26 abril 2010

O livro de eli

Parece um bom filme, pelo menos no início, sentimos qualquer coisa como uma expectativa, quando acompanhamos o peregrino caminhando dentro de um cenário apocalíptico, alguma coisa que nos faz pensar – fez a mim – n'A Estrada, ótimo livro do Cormac McCarthy, com a diferença de que no livro as personagens reproduzem o humano e, no filme, o personagem representado por Denzel Washington parece mais um herói das histórias em quadrinhos.

Desde o início, fica claro que o Livro de Eli é na verdade a bíblia, novo e velho testamentos, e é provavelmente o último exemplar. Uma guerra varreu a terra e o livro, segundo comentário de uma personagem, foi o responsável porque, com a sua “verdade”, dividiu nações e instigou o conflito. No mundo desolado, não sobraram exemplares, tendo sido queimados para se evitar outra guerra.

Faz 30 anos que ocorreu a guerra e desde então a única prerrogativa é sobreviver num mundo caótico onde a antropofagia não causa mais pudicícia em ninguém e ter o controle da pouca água restante faz de um homem o senhor absoluto. Na estrada seguindo para o oeste, está o peregrino, ele acha que uma voz sussurrou àquela direção, é a mesma voz já sussurrada antes nos ouvidos de Moisés, Paulo, ou Joseph Smith.

A perseguição ao peregrino e o desejo de posse da bíblia traduzem a história da motivação. Tanto o mocinho quanto o bandido estão convictos de sua motivação. Enquanto o primeiro está crente de que obedece a uma ordem e a um propósito, algo maior do que ele, que ele não entende porque é insignificante, mas algo em que deve confiar porque bom e justo, o segundo deseja o livro para fazer dele uma arma para controle social, a mesma coisa que fez a Igreja Católica durante os mais de mil anos, que duraram a Idade Média.

O peregrino chega aos destroços de uma cidade dominada por um homem que a conquistou a base da força. É um tipo excêntrico que se espelha nos ditadores do século XX, logo na primeira cena aparece lendo uma biografia de Mussolini. Seu desejo, sua obsessão é conseguir a bíblia e para isto está disposto a tudo como utilizar mercenários selvagens, que matam e pilham a todos na estrada numa desesperada cruzada para encontrar o livro. Quanto ao peregrino ou mocinho, manter-se firme em seu propósito de conduzir o livro até onde deve, até onde a voz ordenou que levasse, não importa a custa do sacrifício que fosse, é aquilo que dá sentido ao homem que sabe que vai morrer, mas a morte não assusta mais, a própria morte deixa de significar desesperança e passa a ocultar outro sentido, o da promessa de eternidade.

O filme peca quando cria uma personagem estereotipada por que pautada no dualismo que divide mocinhos e bandidos. Não há inocência na história do cristianismo e é desrespeitoso – para não dizer pior – esse negócio de um livro, quer seja a bíblia, torá ou alcorão se arrogar o direito de verdade universal. A história do cristianismo não é a história dos justos, há, inclusive, quem faça uma distinção muito clara entre o Cristo e os cristãos. O cristianismo católico serviu aos poderosos, conferiu poder divino a todos os reis que só tiveram esse princípio violado em 1789, depois de considerada uma visão racionalista de mundo. Os peregrinos da vida e sua motivação são os resultados de fanatismo e ignorância, eis tudo. Se alguém quiser chamar isso de fé ou de boa vontade, fique à vontade, mas não muda o fato de que não passam de pobres ignorantes que não se dão conta de que estão servindo à causa do mais forte, como a legião de evangélicos que enriquecem com o dízimo a conta bancária dos Edir Macedos .

O filme não convence, a história é fraca, inverossímil, o peregrino é o Demolidor sem máscaras, capaz de lutar com um bando inteiro sem sofrer arranhões, num roteiro bem típico de Hollywood, que também inclui explosões e mensagem politicamente correta, é mais um bom exemplo que agrada ao público que vai ao cinema porque gosta de pipoca.

13 abril 2010

leitor de conto

O conto privilegia um texto sutil onde as palavras dizem menos e escondem mais.

Tenho reparado que mesmo bons leitores muitas vezes fazem uma leitura indigente do conto e não percebem nem vinte por cento das sutilezas ali escondidas. Não é uma informação o que se deseja obter no conto, mas uma revelação que exige, muitas vezes, nossa participação efetiva no processo criativo. Leitor de conto não é passivo e para angariar o prazer próprio da leitura lhe é cobrado o preço de certo esforço intelectual. É por isso que nenhum editor no Brasil gosta de livros de contos. Pior do que eles só os de poesia.

Vamos imaginar um conto em que um velho compra a casa onde nasceu e se estabelece nela de posse de seis garrafas de vinho. Uma vez ali estabelecido ele começa a tomar as garrafas e lamentar o fato de ter deixado um livro de poemas do Sá-Carneiro no hotel. Promete a si mesmo pegar o livro na primeira oportunidade que nunca aparece. Os vinhos são mencionados e todos são exemplares de uma adega de um homem ao mesmo tempo de posses e de bom gosto. Nesse meio tempo o leitor começa a suspeitar de que há algo estranho e aquele homem possivelmente veio ao encontro da morte. É interessante notar que o poeta português mencionado foi suicida. A suspeita se confirma quando nos últimos parágrafos ficamos sabendo que antes de comprar aquela casa e fazer sua viagem solitária, aquele homem enterrara a própria mulher. O conto termina quando ele relembra o projeto que se desenhou na mente enquanto faziam descer o caixão de Helena, sua esposa, tal ação narrativa se desenrolaria mais ou menos assim:
comprar a casa e mudar-se pra lá de posse apenas de um livro, provavelmente o que estivesse lendo, e algumas garrafas de vinho. As melhores de sua adega. O passo seguinte era fácil. Não comer nada, só vinho e quando as garrafas secassem nem isso.”

O patético suicídio por inanição parece encontrar na morte da mulher o possível motivo e é, certamente, essa a conclusão do leitor apressado.

Pois se não, vejamos. Se ele queria apenas se matar por causa da mulher morta, por que compra a casa onde nasceu?, não haveria nisso nenhum outro propósito?, a casa onde nasceu é provavelmente a metáfora de que o autor precisa para de novo confrontá-lo com seus fantasmas. Essa história, a outra história, que o Ricardo Piglia chama de secreta é aquilo que mantém a tensão do conto e o justifica como obra literária.

O senhor de quase oitenta anos, dono de uma cultura literária e uma adega comprada a custa de uma pequena fortuna foi uma criança quebradiça, debilitada e que por uma estranha razão sobreviveu aos outros, a seu pai morto de câncer aos 37 anos e seu irmão, ainda criança, morto num estúpido acidente automobilístico. Essa é a história que nos é contada nos flashbacks que aparecem entre uma garrafa de vinho e outra. Cada um deles é um pedaço do quebra-cabeça que vai construindo aos olhos do leitor o perfil da personagem.

Basta prestar a atenção, num momento e noutro ele se pergunta por que não morreu no lugar do irmão e lamenta não ter herdado o câncer do pai. Voltar a casa, portanto, é retomar o fio da discussão e continuar a inquirir o absurdo da existência que não nos poupa o sofrimento da perda. Ele deseja se matar porque não suporta a morte. É a história de um homem revoltado com o absurdo de existir e que vê na morte da mulher a gota d’água de que precisava para dar um basta.