29 janeiro 2010

metalinguagem

Provavelmente eu acabei conhecendo a literatura da Argentina depois de ler Borges. No século XX Jorge Luis Borges é uma figura central na literatura, influenciou escritores, diretores de cinema e artistas dos quadrinhos, como Neil Gaiman, por exemplo. Conhecer Borges, portanto, é o que acontece, mais cedo ou mais tarde, com quem gosta de livros. Há uma coisa, entretanto, entre os argentinos e outros escritores de língua espanhola do século XX que acabaram por me chamar a atenção, a mim que de cara simpatizei com aquele axioma de Borges em que ele se declara mais orgulhoso dos livros que leu do que daqueles que escreveu. E essa coisa não é outra senão fazer da própria literatura o tema central de seus contos e romances.

Ricardo Piglia, autor de Respiração Artificial, romance que conta a história de uma busca que inclui a reconstrução da biografia de um possível traidor e um encontro misterioso entre Kafka e Hitler; o catalão Enrique Vila-Matas que a Cosac vem publicando no Brasil desde 2004, autor de Batlerby e Companhia, espécie de romance-relato sobre escritores que por causa da consciência crítica não escreveram ou escreveram um livro ou dois e depois disso renunciaram à escrita e o chileno Roberto Bolaño, morto em 2003 e que vem, desde a década de 90 se notabilizando no mundo como um grande escritor, autor póstumo que nos deixou entre outros Noturno do Chile, A Pista de Gelo, Os detetives Selvagens e Amuleto, narrativa em primeira pessoa por Auxilio Lacouture, artista rippie e louca que se autodeclara mãe de todos os poetas de México, são alguns dos escritores que se encaixam no perfil predito por mim..

Em todos os livros não raro o protagonista é um escritor, às vezes alter ego, às vezes um romancista ou poeta fictício ou histórico, mas todos considerando a vida direta ou indiretamente por trás de uma máquina de escrever.

Tais escritores são alguns dos melhores em língua espanhola (há outros) e quase todos fizeram da própria literatura e suas implicações que ultrapassam o meramente metalingüístico o tema maior de seus escritos. O que é isto?, uma tendência, algo que mais tarde possa ajudar os pesquisadores a identificar alguma coisa próxima de um estilo de época ou uma reação aos piores prognósticos daqueles que vaticinam o fim da literatura? Alguém dirá que talvez não seja nada disso, que talvez não passe da influência de Borges (leitor). Em todo caso não deixa de ser curioso. E fica aí uma boa dica para aqueles que ainda não conheceram os autores citados, sem dúvida uma boa representação do que se faz hoje com a língua de Cervantes.

20 janeiro 2010

história do pranto

Ainda na praia, eu li um cara que tem dado o que falar desde 2003, quando publicou O Passado, livro que virou filme dirigido por Hector Babenco. História do Pranto só tem 85 páginas, é uma novela e nos revela outros pormenores da história da esquerda na Argentina dos anos 1970. Os fatos não são narrados como registro jornalístico, Alan Pauls – é o nome do escritor – vai na contramão da literatura à lá Truman Capote. Ricardo Piglia, no prefácio, diz que o autor da História do Pranto é uma espécie de escritor em extinção porque valoriza o estilo – um exemplo entre nós seria Machado de Assis e Guimarães Rosa, de fato escritores em extinção. Numa entrevista à Bravo, Alan Pauls conta que o livro é uma resposta ou reação contra aqueles, na Argentina, que exercem uma espécie de monopólio da história e acham que só quem viveu aquele tempo – da ditadura – é que tem o direito de falar dele. Outro aspecto do livro é a tentativa de desmistificar a cultura da vitimização. Pauls é de opinião que os argentinos acreditam que ser vítima é ser intenso. Algo que também permeia o universo do tango.

O livro não exige o uso de dicionários e, portanto não está desqualificado para ser lido na praia, mas exige alguma atenção do leitor que às vezes percorre uma página inteira e não sai de dentro da mesma frase. São as frases-droga, como chama o autor, que tem a função de arrastar o leitor e narcotizá-lo.

14 janeiro 2010

na praia

Em janeiro o negócio é sair de férias e de preferência se mandar para o litoral. Seria uma ótima opção não fosse um inconveniente. É que com você também se mandam os imbecis. Minha idéia de praia é o seguinte: uma cadeira confortável onde a gente pode se sentar e se deitar quando uma onda de preguiça tomar conta do corpo, principalmente depois de alguns goles a mais de cerveja. Pois bem, antes da preguiça e do exagero alcoólico, nosso corpo ainda se mantém sentado e nós seguramos na mão um bom livro. Não precisa ser nada difícil, Euclides da Cunha não é uma boa idéia nem o autor de Balmaceda tampouco; a preocupação com dicionários e lápis com a ponta que precisa ser refeita de vez em quando não combina muito com a tal cadeira e os pés – descalços – metidos na areia. Eu recomendo um livro que dispense a consulta ao dicionário ou anotações no rodapé, um livro que não subestime nossa inteligência, mas que não superestime tampouco. Um livro que o marulho das ondas não atrapalhe sua leitura, no máximo possa servir de música ao fundo que logo esquecemos tão vidrados ficamos. Eu penso num clássico da literatura noir como O Falcão Maltês de Hammett, por exemplo. É, o Falcão é uma ótima idéia. Um desses livros que provoca prazer e que, talvez por isso e por dispensar dicionários, o Fernando Sabino tão injustamente taxou de descartáveis. Você, sua cadeira dobrável e o Falcão. No mais a areia e o mar rugindo.

Até que a gente acorda do sonho e se depara com o pesadelo. Há uma infinidade de barracas com um monte de mesinhas distribuídas segundo uma convenção que respeita os direitos territoriais de cada barraqueiro. Em cima da mesa mais uma cerveja enquanto milhares de vasilhames vazios se amontoam por toda parte. Em torno da mesa os tais imbecis. Mais tarde eles vão se vangloriar da enorme quantidade de álcool que conseguiram ingerir. Agora, enquanto pedem mais uma, meditam sobre coisa nenhuma enquanto fitam descarados mais uma bunda. Mas o pior não é isso. Não é a cerveja nem fitar e se deliciar diante de uma bunda. O pior é a música que esses senhores e senhoras não param de ouvir do momento que se sentam até o momento quando vão embora. Eu não preciso dá nome aos porcos – são porcos os cantores e cantoras das tais bandas – de forro, axé e mais o diabo com todos os seus dotes menos o da música. Não é possível conversar, o volume muito alto exige que você grite. No início todo mundo ainda consegue gritar uma vez e outra, mas não é possível fazer isso por horas, mesmo a melhor conversa soçobra, vencida pelo barulho e o cansaço das gargantas que agora, impedidas de falar, prestam-se somente ao consumo de álcool – e deve ser esta a razão por que o barraqueiro investe tanto no som da barraca.

Quem sonha poder nas férias ler o seu Hammett sentado na sua cadeira dobrável tem que fazer como eu: evite as aglomerações, corra de São José e Tamandaré, procure as praias desertas, mesmo que o consumo de gasolina ultrapasse o orçamento. Amanhã eu vou pra Tambaba. É verdade que todos tiram a roupa por lá, e isso pode distrair meu Falcão, mas a moça do centro turístico me garantiu uma coisa, disse que o som – o senhor pode confiar – é proibido nas barracas.

11 janeiro 2010

Viagem Vertical

Os romances de Vila-Matas são oportunidades para conversar sobre livros e escritores: O Mal de Montano é assim e Batlerby e companhia também. Ele me lembra Borges, não o escritor – se é que podemos separar as duas figuras –, mas o leitor. Borges disse certa vez que se sentia capaz de passar 24 horas falando sobre literatura. Seus livros atestam isso. Neles o tema mais recorrente é o do mundo representado pela biblioteca. Os contos são ensaios sobre livros. São famosos seus prólogos. Vila-Matas se identifica com Borges, certamente é seu leitor da vida inteira e assim como o escritor argentino ele também se sente atraído pelos livros.

Acabei de ler Viagem Vertical, publicado aqui no Brasil em 2004 pela Cosac Naify. Li depois de todos os outros, dos já mencionados e mais Paris não tem fim e Suicídios Exemplares. Adiei a leitura de Viagem Vertical porque diferente dos outros este não me parecia trazer o tema da literatura, do qual gosto muito, mas uma experiência diferente: o do homem em crise, algo muito próximo, pensei, de dois livros que li no final do ano passado e sobre os quais escrevi aqui no blog: Homem Comum de Philip Roth e A Casa das belas adormecidas de Kawabata – sem o apelo erótico deste último. Livros que tratam da velhice, morte e falta de sentido da vida.

De fato. Até a página 179 – de um total de 252 – o leitor deduz que Viagem Vertical é uma história contada em terceira pessoa que tem como protagonista Mayol – um velho aposentado, dono de uma empresa de seguros que vê a vida vir abaixo no dia em que a mulher lhe faz um estranho pedido. Ele vai desembarcar na Madeira, em Portugal, sem rumo e sem tino, onde encontra por acaso o sobrinho a quem não via fazia anos e que como o tio, também passa por uma crise. Dono de uma solidão que não consegue conter no peito, a personagem ver-se na sua viagem vertical.

Ao que tudo indica Mayol levava uma vida normal, estava aposentado, havia passado a empresa para o comando do primogênito – de quem se orgulhava – e se distraia do fim apostando na convicção de que deixava as coisas em ordem e se sua vida chegava nos últimos momentos, ao menos fez sentido, afinal construiu algo de sólido como a família e a empresa milionária. Em outras palavras, o fim não era encarado com perplexidade, mas com conformismo e parcimônia.

Algo, entretanto, acontece que vai tirar o ancião de tempo. O pedido absurdo da mulher é que ele desapareça da vida dela. A esse choque vem juntar-se a decepção com o filho mais velho que se diz cansado da empresa e do casamento e pior que isso; o ressentimento que nutre pelo filho Julián, um pintor excêntrico que se julga o próprio Toulouse-Lautrec vivendo na Paris boêmia dos anos vinte. Esse filho caçula e solteiro de 42 anos é um imbecil da cabeça aos pés apesar de ser homem culto e instruído. Num episódio recente, recordado por Mayol enquanto caminha pelas tumbas de um cemitério, chama o pai de inculto. Ora, o complexo de inferioridade por ter freqüentado a escola só até os catorze anos é uma frustração que Mayol carrega. Recordar-se da declaração do filho no momento de crise desencadeada pela expulsão da mulher só piora as coisas e o faz se sentir como a última das criaturas.

Na página 179 nos surpreendemos com o narrador. Não é onisciente, não é Vila-Matas, mas o gerente do hotel onde está hospedado Mayol na Madeira. Esse gerente se interessa pela história do velho e vê nela a oportunidade de escrever seu primeiro romance, apresenta o hospede a uma espécie de clube literário e a história do homem em crise acaba incluindo conversas sobre o livro – mesmo os que Mayol disse que leu sem ter lido – e nós, leitores de Vila-Matas, reencontramos o autor que não consegue separar a vida da literatura.

08 janeiro 2010

Cine Privê

Mário, acabei de ler Cine Privê e concordo que se trata de um bom livro, aquilo que me preocupa é quando o Antônio Carlos Viana é apresentado como a melhor expressão do conto no Brasil. Não é bem assim. Os contos são bons, aquilo que ele toma de empréstimo de João Cabral e Graciliano – a prosa enxuta e direta –, conservando ambigüidade e o lance da história que não termina no ponto final são excelentes, mas são recursos utilizados por todo mundo. Todo mundo evita verborragia e quem leu as teses do conto de Piglia sabe que ambigüidade e história secreta são elementos básicos. Tudo bem, imagino que você esteja pensando – como todo mundo, aliás – que a questão não é essa, mas a habilidade do escritor em saber lidar com tais elementos. Concordo, sem dúvida, mas eu posso citar uns dez contistas que fazem isso tão bem e até melhor do que o Viana, quer um exemplo?, o Ronaldo Correia de Brito. Em Viana a prosa enxuta e seca serve para conferir mais efeito nos flagrantes de personagens em situação limite, normalmente advinda da miséria e loucura. Aliás, de miséria e loucura padecem as personagens do Antônio Carlos Viana. Não é uma crítica, todo escritor tem suas obsessões. Não acredito em escritor que não tenha obsessão. A vontade de matar o irmão ou fornicar com a mãe, sofrer na pele e alimentar o despotismo do pai, além da possibilidade de poder recorrer ao suicídio e por isso encontrar lenitivo para continuar vivendo já nos rendeu excelentes obras primas. Mas a força dos contos de Viana parece residir muito mais no choque que nos causa o quanto na merda seus personagens estão afundados do que na realização material da escrita. Ele se orgulha de colocar na fala da personagem o discurso possível daquele personagem, condicionado pelo meio cultural como se isso fosse uma novidade e não uma característica já fartamente utilizada por naturalistas e regionalistas etc. Mas, retomando o que eu falei no início, o cara é bom e tudo mais, apenas não é a melhor expressão da literatura contemporânea. Não pode ser e se for, preocupa-me as veredas estreitas dessas nossas letras nacionais.

06 janeiro 2010

livreiro da província

O ruim de viver na província é que deixamos de usufruir determinadas coisas que só encontramos nos grandes centros como teatro, cinema que não passe apenas as últimas super produções americanas e uma boa livraria. É por isso que o Joaquim se mandou para o Recife.

Todo mundo sabe que brasileiro não lê. Pelo menos não lê como deveria. O número de leitores potenciais de que nos fala Marçal Aquino é de fazer dó, em todo o território brasileiro ele contabilizou 600 ou 500, não me lembro agora. Marçal não estava se referindo aos leitores dos livros que viraram filmes, auto-ajuda ou os pretensos livros psicografados. Esses não contam. Não merecem figurar numa estatística, ou pelo menos não numa estatística que pretendesse medir o bom nível intelectual de leitores.

Na província não há livrarias e quando algum corajoso empresário do ramo inventa de investir no negócio, tem de conviver com todos olhando pra você como se você não fosse outro senão Dom Quixote.

Foi ousadia querer vender as traduções póstumas dos livros do Roberto Bolaño ou o último livro do Enrique Vila-Matas que na Europa e nos Estados Unidos é best seller e aqui no Brasil continua sendo escritor de escritor com uma tiragem ridícula de 3000 exemplares. É difícil vender na capital e você querendo vender na província, faça-me o favor, e ainda tem Coetzee e todo o Osman Lins recentemente reeditado pela Cia das Letras. Meu amigo, você não tem tino para os negócios, você é muito sonhador, quer ganhar dinheiro vendendo livros de poesias. Estou vendo que você já adquiriu As Plantas Crescem Latindo. Você não se emenda, tente outro negócio ou devolva esses livros para a editora, desocupe as prateleiras e depois entupa todas elas com os livros que viraram filmes, auto-ajuda, esoterismo barato e mais um monte de porcarias para o deleite dos imbecis.

E para não mudar de negócio porque o bar será sua última opção de sobrevivência, o livreiro da província que não tem na sua cidade sequer uma parcela mínima dos tais leitores potenciais, acata o conselho prudente, perde todo o amor pelo que fazia e passa a morrer todos os anos de uma ulcera gástrica.