26 junho 2013

FLIG 2013

Foi anunciado que em setembro deste ano o FLIG, festival de literatura de Garanhuns, vai ressuscitar. O evento teve três edições, nas ocasiões, realizado pela Academia de Letras de Garanhuns, APL e UBE.  João Marques, o presidente da Academia e a Prefeitura de Garanhuns estão somando esforços para realizar o milagre de trazer o morto à vida. Isso é bom, e acontece num momento favorável quando a produção literária local chama a atenção da capital. E melhor ainda será se os organizadores do evento aprenderam com a experiência.

A morte do festival foi anunciada em sua primeira edição, e eu fui o chato que chamou a atenção de todos para o fato. O formato do evento não agradou, trazia o selo de validade vencido, acontecia no palco do teatro, a uma distância enorme do público, havia uma mesa muito parecida com aquela em que Cristo comeu seu triste e último desjejum, era ali onde se estreitava o escritor, exprimido por um tal presidente da mesa e um tal relator, dois Judas de imobilidade e serventia. Além da falta de apoio, foi a pompa e formalidade o outro vilão que ultimou o evento na sua terceira edição. Não funciona assim, é preciso mudar, a Academia tem sua ritualística, seu ritmo que de jeito nenhum deve imprimir ao festival, este obedece a outra lógica, ambiciona outro público além da homogenia audiência dos acadêmicos, e como ninguém é obrigado a comparecer, o festival deve se atrever a acreditar que os jovens possam se interessar por uma conversa de escritores.


Outra coisa importante é evitar a segregação. Isso mesmo. Não existe esse negócio de literatura de Pernambuco ou de Garanhuns ou de Nova Iorque. Existe literatura boa e literatura que não presta. Quando se faz um evento para mostrar a literatura de Pernambuco, quando essa é a justificativa do evento, acaba se prestando um desserviço ao escritor. É como se por trás disso houvesse uma lógica fascista que dita uma regra: de um lado a literatura e do outro a literatura de Pernambuco. O evento deve convidar bons escritores, escritores jovens, escritores daqui e escritores já maduros com obras publicadas por grandes selos e distribuídas no Brasil. Vamos conversar, convidar críticos literários para mediar as mesas e discutir crítica literária, vamos fazer bonito e chamar a atenção de todos para um evento enxuto, sem provincianismo.

16 maio 2013

Do tiro no próprio pé



Marina Silva defendeu o Presidente da Comissão de Direitos Humanos, o muito querido das redes sociais, deputado e pastor evangélico Marco Feliciano. O evento se deu no auditório da Universidade Católica de Pernambuco. A ex candidata a presidente do Brasil disse que Feliciano estaria sendo hostilizado mais por ser evengélico do que por suas declarações equivocadas.

O interessante é que muitos que acusam Feliciano são cristãos, cristãos de todas as denominações, cristãos católicos, cristãos espíritas, cristãos que ainda esperam Dom Sebastião e até cristãos devotos de matadores de dragões, mas todos, enfim, cristãos; creem no Cristo, na sua morte e ressurreição e por certo na Bíblia, o livro santo que contem a revelação do Senhor. O livro de lombada dourada, com ilustrações de Gustave Doré, enorme e muito digno que serve para enfeitar o móvel da sala e advertir os visitantes que ali reside uma família temente a Deus.

Tantos cristãos críticos não se deram conta ainda que o que pensa Feliciano e o conteúdo de suas declarações está intimamente ligado ao fato de ser cristão (evangélico). Sua condição de sectário pressupõe uma visão de mundo que não destoa da bíblia, como a visão de mundo do islâmico não destoa do Alcorão. Sobre a homofobia, talvez a polêmica maior que envolve o deputado, a Bíblia é sete vezes sete mais radical do que Feliciano, basta ler o episódio do Gênesis que trata da destruição de Sodoma e Gomorra ou Levítico 20:13; o sexo entre iguais nunca foi do agrado de Deus.

A crítica a Feliciano, à sua visão tacanha e anacrônica do mundo, é a crítica à visão de mundo da bíblia. Só os críticos não perceberam isso, pelo menos os críticos cristãos, e isso é muito engraçado, se não fosse trágico.

15 maio 2013

fazer o quê?


Mesmo escritores importantes e homens comprometidos com seu tempo são capazes de ficar absolutamente cegos pela ideologia – um facho de luz que lhes atira do cavalo no chão de fé e dogmatismo. E nem os ateus são imunes, também eles são capazes de transcendência.  É o caso de muitos escritores da América Latina, alguns entre eles clássicos, como Gabriel Garcia Marques, que nunca questionou o fato de alguém se perpetuar no poder, como Fidel. Isso é ditadura e ditadura não é boa, seja ela de esquerda ou direita. Uma vez, na fliporto, ouvi o Galeano falar de Hugo Chavez, e parecia que ele estava falando do mais inocente e meigo de todos os homens. Inocente? Tudo bem que ele se transformou em pomba, quando morreu, mas tenho a mesma impressão de Alberto Caeiro sobre as pombas, são estúpidas e feias. Mas não julgo um bom escritor só porque ele sofre de improbidade intelectual. Que ele seja partidário ou sectário de uma seita religiosa, daquelas bem anacrônicas que ainda supõe sem máculas o hímen de Maria, tudo bem, desde que  faça literatura e não panfleto. O caso mais extremo talvez seja Ferdinand Celine, o cara era colaborador nazista, mas escreveu Viagem ao fim da noite, fazer o quê?

20 março 2013

Uma estadia em Recife


Fellipe, o jornalista do Diário de Pernambuco não foi o único que ficou surpreso quando soube que eu, autor de livro de contos e um dos editores de um jornal de literatura, era do Corpo de Bombeiros. Literatura, pelo menos para o escritor obscuro, autor de obra independente e que vive num mundo estranho ao eixo rio-são paulo, não é capaz de prover as necessidades financeiras de ninguém, espera-se que o escritor também seja jornalista, professor ou outra profissão afim das letras. Antes de Fellipe foi a vez de João Marques. Um dia ele me disse: Nivaldo, esse negócio de ser militar não tem nada a ver com literatura, deixa o Corpo de Bombeiros e te dedica à educação, vai ser professor, rapaz. O que eu respondi a João naquela ocasião; repeti agora para o Fellipe. Disse-lhes que o CB é um aliado importante porque me paga um salário e de quebra me concede tempo livre que eu aproveito lendo e escrevendo.

Além de me disponibilizar tempo pra ler e escrever, o CB é capaz de outros prodígios como foi em 2005 quando fui transferido, contra minha vontade, da Seção de Bombeiros de Garanhuns para a Diretoria Administrativa no CCB, em Recife. Naquela ocasião as circunstâncias me oportunizaram frequentar a oficina de Raimundo Carrero uma vez por semana durante um ano e conhecer, numa leitura de contos, na livraria cultura, o escritor Ronaldo Correia de Brito. Tal encontro, com Ronaldo e com a Oficina de Carrero (eu já conhecia o autor de Sombra Severa fazia alguns anos) foi muito importante. Até aquele momento eu ainda não havia rompido as fronteiras que me separavam do resto do mundo, nem virtualmente, uma vez que a internet continuava pra mim um terreno inexplorado. Vivia em Garanhuns, na minha província, e meus voos não iam além dos livros. Os contos eram consumidos por alguns bons amigos que por educação ou porque nossa proximidade lhes embotava o censo crítico, não se arriscavam em críticas mais severas.

Na oficina, além da exposição de novas técnicas e verdadeiras autópsias que procedíamos sob a batuta de Carrero em clássicos como Madame Bovary ou Doutor Fausto, também se faziam leituras de contos dos alunos. Nem todos se aventuravam, mas eu estava ali passando umas chuvas, a qualquer momento poderia voltar pra Garanhuns, por isso não poderia me dar ao luxo de pudores e mesmo temendo parecer impertinente me expunha sempre que possível ávido pela impressão que poderia causar no mestre e carente de suas observações. É bem verdade que nem sempre me conformava com as observações de Carrero, às vezes elas me pareciam o resultado de puro cansaço do professor diante dos alunos ineptos. Numa dessas ocasiões ele achou de cismar com uma palavra aparentemente sem importância que apontou num parágrafo. Eu jamais usaria esse verbo, disse num tom quase arrogante. O famigerado verbo se tratava de tinha, pretérito imperfeito. Para Carrero tinha soava como doença ou coceira. Isso aqui não é o Parnasianismo, eu lhe disse, tinha é tão palavra quanto qualquer outra. A discussão se alongou e envolveu outros alunos. Carrero é um amor de pessoa, é o cara mais gentil que eu conheço. Suas observações eram sempre apresentadas com muita delicadeza. As duas horas passaram rápido e eu voltei para meu alojamento no colégio da polícia militar (nesses dois anos que passei em Recife, também ministrei aula de literatura para quatro turmas de terceiro ano naquele colégio) no alojamento me sentei na cama com o conto na mão, reli o parágrafo e substitui a palavra execrada pelo mestre. O resultado me pareceu melhor. Afinal Carrero tinha razão.

Até aquele momento, embora Ronaldo já fosse o festejado autor de Faca e Livro dos Homens, eu ainda não o conhecia. Fui encontrá-lo na livraria cultura, onde dividia o auditório com Luzilá Gonçalves. Gostei de Ronaldo naquela hora. Ele me pareceu o escritor idealizado por mim, tão apaixonado e envolvido com o que fazia ao ponto disso estar refletido na sua compleição física, por isso seus modos de homem culto, herdeiro da memória dos livros e consciente da dor e do efêmero, revelava sua verdadeira natureza de artista, do tipo capaz de tal sofisticação que soava fatal, quase trágica como a de Adrian Leverkun.

Eu pedi que Cristhiano Aguiar nos apresentasse, Ronaldo se mostrou receptivo, acho que ele percebeu que estava diante de um futuro leitor, aquele para quem a gente escreve na esperança de um diálogo. Se foi isso o que pensou, acertou em cheio. Se ele ganhou um leitor, eu ganhei um professor. Eu já tinha Carrero. A oportunidade de ter dois professores de peso me foi dada em troca de minha transferência de quartel. O pacato e tranqüilo de Garanhuns pela torre de babel do Recife. Eu ainda não disse, mas a transferência não fazia sentido, Recife já tinha sargentos de mais, as seções estavam ocupadas por eles, sargento batendo em sargento. O que eu fazia ali, tão distante de Garanhuns? Ninguém sabia me responder, alguns oficiais concordavam que minha transferência era despropositada, provavelmente um equívoco, por isso compraram a briga, mas seus esforços resultaram inúteis, ninguém sabia de onde partira a ideia da transferência, é certo que fora publicada no Boletim Geral, de fato a Seção de Pessoal da D.A. precisava de um primeiro sargento, mas por que eu?, tudo ia de mal a pior. Entre a publicação da nota de transferência e minha apresentação houve mudança de comando, eu precisava esperar; outra transferência agora só mediante permuta. Nesse meio tempo eu me vi responsável pelo setor de pessoal da D.A., aquilo estava um caos. O tempo foi se passando, todos os dias eu falava com um capitão ou major diferente, ninguém dava jeito, eu sofria por causa da burocracia.

Então a burocracia me venceu. Um dia eu deixei de procurar, também não sabia se ainda estava interessado em voltar pra Garanhuns, eu estava gostando da Oficina, sentia que ela surtia efeito. As observações de Carrero foram capazes de me dar um novo olhar sobre meus escritos, somado a isso havia o diálogo com Ronaldo. Dei de ombros e me deixei levar pela correnteza.

A vida de Ronaldo não é fácil, precisava se dividir entre a medicina, a família e sua produção literária, apesar disso, ele abriu um espaço na sua agenda e aceitou ler meus contos e se encontrar comigo para comentar sua impressão. Nem sempre Ronaldo era delicado como Carrero, mas eu gostava de sua sinceridade que às vezes me parecia transformada em sadismo. Suas observações eram duras, ele não alisava, refazia parágrafos inteiros, me chamava a atenção para a inutilidade de uma frase, questionava a verossimilhança de um perfil de personagem e dizia que eu precisava sujar o texto. Ousar mais. Na melhor das hipóteses ele dizia que o conto não estava ruim, mas faltava alguma coisa. Às vezes eu saía de um desses encontros desolado, pensando seriamente em desistir da literatura. Mas todo aquele esforço de Ronaldo para que eu perdesse minha literatura escondia um intuito secreto: Eu precisava perdê-la para achá-la.

Durante aqueles dois anos, tive o privilégio de me encontrar com Ronaldo Correia de Brito e Raimundo Carrero, dois importantes escritores que para sorte minha foram com a minha cara, e me levaram a sério como escritor, sou grato a eles e também ao Corpo de Bombeiros e sua burocracia kafkiana que possibilitou tal encontro. 

15 fevereiro 2013

O destino das metáforas

A voz em primeira pessoa, a sutileza, o transcorrer do tempo, a morte na metáfora da máquina do tempo. Daniel, o amigo, o que ficou para trás e espera a máquina é a história da transcendência que não se realiza. Nesse conto que empresta título ao livro, assim como nos outros – e para mim uma das confirmações de sua unidade – o plano de narração reflete outros planos em que a súmula dos efeitos da escritura de Sidney Rocha – todos em pró do não dito – faz a diferença entre o limite do real e sua fabulação.

O destino das metáforas é transcender a realidade que se divisa na historia do garoto cego que tropeça no gato de três patas (gato para quem recairá a fúria) e tomba da escadaria para a morte ou no pai que mata os filhos arremessando-os da ponte como se pequenas aves fossem e precisassem do incentivo paterno para voar. Também no bebê de passos trôpegos que morde e arranca o mamilo (a lua) da mãe numa correspondência genial com os passos trôpegos de Armstrong vistos na TV. Esses são resumos mal feitos de alguns dos contos do livro. Nele a realidade chã é transmutada para outra dimensão, a dimensão poética que refaz o teatro em que se desenrola o drama humano.

Em todos os contos nota-se uma rigorosa medida, coisa de matemático, que milimetricamente conduz o leitor em cada frase. Tudo parece ser calculado, e do traçado disso surge diante do leitor satisfeito uma prosa rigorosa e vigorosa; parábolas de tensão e linguagem sem estratégia nenhuma de efeitos vazios (tão comum nesses tempos pós-modernos, quando se tornou tão difícil ser escritor, e resta o desespero e uma busca quase vã pela originalidade) Sidney Rocha, em O destino das metáforas, não se confunde com esse tipo de prestidigitador canhestro.

Os contos apresentam camadas, talvez outro nome para a história secreta de Piglia, daí, talvez, a sensação de que você leu uma narrativa que deixa na lembrança a certeza de que não foi apenas aquele número de página, indicada no sumário, não aquele número – os contos são curtos, alguns curtíssimos – a responsável em conter todo o jorro da narrativa. A realidade explicitada não basta, existe alguma coisa a mais que se esconde, se insinua, algo que você leitor quase nunca sabe o que é, mas, desconfiado, alimenta suspeitas. Uma suspeita de que há algo a mais (que o noticiário deu conta superficialmente) e que não foi dito a respeito do sujeito encontrado morto numa lata de lixo.

Há muito o que dizer do conjunto dos contos. Em Castilho Hernandez, por exemplo, um dos meus favoritos, a perda da identidade e certa esquizofrenia da personagem da o tom e Sidney se sai muito bem na sua contribuição para a galeria de contos (em que se destacam Poe e Borges) que exploram a temática do Outro. A escritura poliédrica permitiu-lhe explorar num mesmo conto, como A Vida e A Morte de John Lennon, vários temas como o fim da infância (numa bonita metáfora que nos lembra Baudelaire, “o fim da infância, a cidade deixada pra trás...” ), a reinvenção de Sísifo na necessidade de andar em círculo, a felicidade e a morte vistas ao mesmo tempo num beijo, o erotismo e a perda do vigor, o inacessível objeto de desejo, a senilidade e a morte. Tudo isso num só conto, milimetricamente construído e de uma unidade a toda prova.

Mas nem só do não dito ou de uma narrativa bem estruturada vive O destino das metáforas, nele encontramos o criador de clichês, que ainda não são clichês no momento em que são forjados, só quando passam a ser tomados de empréstimo por outros escritores. Nos contos há uma riqueza de construções que trazem a marca da originalidade; uma obsessão dos nossos tempos, como eu já disse, quando se tornou impossível ser original porque chegamos tarde, diria Harold Bloom. Num único parágrafo o leitor se depara com construções como: “Nunca trocaram palavras, é verdade, mas deu-lhe a distância como pedagogia, e como madrinha a própria esposa, vejam, e esta, nos Natais ia lá e lhe sondava as necessidades.” e “A morte lhe deu feição de sinistro monumento.” De fato o automatismo da escrita de Sidney inventa frases e suas conexões com o mundo real traduz para o leitor um tanto de beleza que é poesia sem deixar de ser prosa.

Sobre seus mestres mudos, consigo localizar Borges e Cortazar. Não são reflexos no espelho de Sidney, são companheiros das mesmas inquietações. Com eles aprendeu, ao seu modo, reinventar o uso das metáforas, a história dentro da história, a arte do não dito e a exploração do insólito – talvez com menor recorrência, apesar de tão comum na literatura desde “Kafka e seus precursores” – como no conto Magnetismo, quando o autor transcende o contexto da experiência cotidiana com o menino que era um ímã e atraía os metais, engolindo tudo; o médico mesmerista e a Torre de Paris, que é logo substituída para se conservar a plasticidade da realidade. Além de todos esses elementos, que é o melhor que encontramos na literatura contemporânea e emprestam ao livro sofisticação, Sidney conservou a narrativa, a história, não caiu nas armadilhas (dos desesperados por originalidade) das pirotecnias e hermetismos áridos.

Também encontrei nos contos uma desesperança, Sidney deve desconfiar muito do gênero humano, ele é um pessimista, no melhor sentido, como Saramago foi, mas é fato que o sofrimento dos homens e mulheres é combustível do qual se alimenta o escritor, talvez porque deseje expurgá-lo, não sei, ele não é o deus dos hebreus, não é sádico, se importa com o sofrimento que aflige os humanos, sem dúvida, e por isso precisa fazer algo, e como seria anacrônico demais colocar uma boina e ir viver na selva amazônica treinando guerrilheiros, ele escreve e suas criaturas, como Atlas, carregam nas costas um peso imensurável, daí a recorrência da morte e da loucura, mas não há nada de casmurro nos contos, há humor e delicadeza, o tipo de humor que nos faz pensar e a delicadeza que nos desconcerta. O destino das metáforas, em suma, é um desses livros que exige um leitor que seja capaz de encarar a literatura mais do que mero entretenimento.