22 novembro 2011

Narciso, todo poderoso

Entre os religiosos do islã, não há uma separação entre o Deus prescrito no livro sagrado – Corão – e aquele que de fato povoa o imaginário dos fieis. Entre os cristãos o Deus que povoa o imaginário dos crentes se distancia daquele previsto na bíblia todas as vezes que o espírito da época exige. Isso ocorre, provavelmente, porque o cristianismo sofreu reformas e aproximações históricas que o islã não permitiu. É por isso que se diz que as bases de uma religião estão na manutenção da tradição.

De fato, hoje em dia, a Igreja Católica considera boa parte das escrituras como alegorias, portadoras de verdades teológicas (se é que isso quer dizer alguma coisa), mas que não possuem necessariamente verdade histórica. É claro que nem todo mundo está de acordo, principalmente entre os sectários fundamentalistas de certas seitas evangélicas. Mas o fato é que muito do que a bíblia preconiza, quer seja histórico quer seja verdade moral, não pode ser entendido literalmente, senão a gente vai sair por aí matando homossexuais ou os filhos que nos desobedecerem.

Para a sobrevivência da religião anacrônica – como são todos os monoteísmos – se faz necessário todo tipo de contorcionismo. Nietzsche chamava a isso de improbidade intelectual. Muitos acham que ela precisa acompanhar os novos tempos, coisa muito estranha, se imaginarmos que ela é a palavra de Deus, e como tal imutável. Mas o fato é que muitos ainda, apesar de todos os avanços e descobertas, seja no campo da paleontologia, seja na física, não deseja abrir mão da idéia consoladora de um pai. Sobre isso nada posso acrescentar que já não esteja esmiuçado em O Futuro de uma ilusão, de Freud.

Então acontece uma coisa; de repente não concordamos mais com o livro e passamos a considerá-lo ultrapassado. Mas isso acontece num nível do inconsciente, ainda é a Palavra, mas a Palavra que precisa ser decifrada, que guarda um grande segredo. Então as pessoas se recusam a ler com medo de ter de se deparar com tais verdades porque no fundo parecem vulgares e despropositadas. É preferível não ler, então as pessoas – aquelas que não querem abdicar da idéia de que há um pai – passam a nutrir muito receio do Livro, conservando-o na estante. É por isso que algumas pessoas pagam verdadeiras fortunas em bíblias enormes, quase impossíveis de manusear, com lombada dourada e contendo todas as ilustrações de Doré. É para não ter que ler, afinal fica muito pesada. Impossível de manusear. Lá dentro, consigo mesmo, o sujeito quebra a cabeça: Não é possível que alguém quer que eu leve à sério isso?

Vou dar um exemplo, aquilo que Deus diz à mulher, depois que os dois comem da fruta do bem e do mal. Já leram? Pois então vamos lá para o Livro de Gênesis 3,16: “com dor terás filho e tua vontade será para sempre a do teu marido e ele te dominará.”

Qual é a mulher, no mundo ocidental e em nossos dias, que está disposta a encarar esse absurdo como uma verdade inquestionável? Qual é a mulher, depois de toda a luta que travaram no fatídico século XX – que ainda travam nesse começo de século – que não se sente ofendida diante de tais palavras, tal castigo, tal maldição?

Na última festa literária de Olinda encontrei a Maria Paula, aquela do Casseta e Planeta, numa das mesas alternativas do evento. Ela e mais duas mulheres desenvolviam um trabalho com o público que tinha como tema o papel da mulher na história ou qualquer coisa do gênero. A intenção era fazer justiça à mulher que sempre sofreu descriminação e a quem foi dado um lugar de subordinação. Então a partir de islaides e comentários quase sempre bem humorados elas passaram a descrever como as mulheres atuaram nos diversos momentos históricos. Na Idade Média elas não deixaram de culpar a Igreja e seus clérigos por terem sido demonizadas.

Quando a conversa acabou eu levantei a mão e fiz uma pergunta: Por que a mulher, perguntei, apesar de ter sofrido e ainda sofrer tirania por parte da religião, continua sendo sua maior defensora?

Maria olhou para as amigas e saiu-se com uma resposta que é o mais puro reflexo desse contorcionismo de que falei. Ela disse que a mulher tem predisposição à fé, algo que faz parte da sua natureza, daí porque sua defesa da religião. É claro que essa resposta tem mais de romantismo ou idealismo do que argumentação e propriedade, ela não considerou o fato do condicionamento sofrido pela mulher, algo indelével que decerto deixou marcas profundas. Mas não foi essa resposta aquilo que me chamou a atenção na sua fala, mas o que ela disse um pouco antes, referindo-se à bíblia; disse que era um livro escrito por homens, cheio de idéias masculinas e, portanto sem importância para os dias de hoje. Chamou o livro de anacrônico e descontextualizado.

E aí eu volto para o que disse no início; as pessoas estão fazendo uma separação ou distinção, Maria Paula não disse nenhuma novidade; uma coisa é a bíblia e o Deus ali prescrito, outra coisa é o Deus que cada um imagina e idealiza de acordo com seus interesses. É a confirmação do axioma: Deus é feito à imagem e semelhança do homem. Mas agora deixa de ser aplicado à coletividade. Não mais a um grupo social e cultural que compartilham a mesma idéia de divindade. Deus fragmentou-se e está subordinado ao reflexo do indivíduo. Narciso elevado à mais alta hierarquia.

Sem dúvida alguma coisa se quebrou.