20 outubro 2010

Carrero está bem

Entre os escritores do Brasil, e eu estou falando daqueles que são bem editados e já podem contar entre suas conquistas com prêmios literários etc, noto que há muito diletantismo. Talvez porque aqui literatura nunca foi encarada com seriedade, porque só é encarado com seriedade aquilo que gera lucro. Literatura não é pragmatismo, é coisa do espírito, e num mundo onde mesmo as coisas do espírito precisam gerar lucro – a doutrina da prosperidade que o diga – a literatura passa por excentricidade.

Talvez por isso e o fato de que a classe média brasileira não lê; os professore não lêem, nem os advogados que às vezes passam dez, vinte anos tentando passar no exame da ordem, tampouco os médicos, coitados, sem tempo para as coisas do espírito, ocupados que ficam a vida inteira com o ambicioso projeto de trabalhar muito para ficarem ricos, e a elite burra. Aliás, não se diz que o Brasil tem uma elite burra, pode-se incorrer em redundância. Já o povo, de todas as classes – o povo é uma classe? – faz um juízo diferente da literatura; pra ele literatura não é excentricidade ou perda de tempo, não é o mesmo juízo que faz a classe média ou elite. O povo não despreza a literatura, pelo contrário, sente por ela o mesmo que sentiam os católicos pela missa rezada em latim: não entendiam nada, mas por isso mesmo adivinhavam ali algo misterioso. O povo não lê não é porque o livro é caro. O livro é caro, decerto, mas existem espalhadas pelo país milhares de bibliotecas e salas de leitura que o presidente analfabeto criou. O povo não lê, na verdade, por duas razões: primeiro porque considera o livro algo misterioso e, como todos sabem, o povo é supersticioso, e segundo porque perdeu a inocência de tanto assistir televisão. A televisão é o veículo pelo qual o povo acompanha as modas inventadas pela classe média e a elite (em quem o povo se espelha), e entre tantas modas – algumas bem ousadas – não há nenhuma sobre o livro e seus mistérios.

Mas eu dizia que entre os escritores do Brasil há muito diletantismo, talvez pelas razões demonstradas, e outras, sem dúvida. Ser escritor no Brasil não é fácil. De todas as profissões, é, sem dúvida nenhuma, aquela que melhor representa o Mito de Sísifo. Por isso os escritores – desmotivados – não levam muito a sério o que fazem. Mas há exceções – sempre há exceções – no caso da literatura eu citaria Raimundo Carrero que neste momento, enquanto escrevo essas linhas, está na UTI, se recuperando de um AVC. Carrero é incansável, é um monstro e vem demonstrando nos últimos anos um ritmo de trabalho atípico, tão diferente da produção da maioria de seus colegas diletantes. Num país em que as editoras não estão nem aí se o escritor está ou não com um livro novo, num país que não existe a figura do agente literário, num país em que as editoras abandonam o escritor pelo caminho e mesmo o escritor importante, ganhador de prêmios e reconhecimento da crítica precisa implorar para seu livro ser editado e esperar um ano inteiro, às vezes mais, que o editor se resolva. Num país como este Carrero faz a diferença.

Ele começou no Movimento Armorial, mas abandonou aquele universo, sua inquietação é a daquele escritor em permanente busca por outras possibilidades. Ele costuma dizer que ainda não escreveu a obra pela qual deseja ser lembrado, talvez não, mas sua produção já conta com algumas obras primas. Mas não é o suficiente, não está satisfeito e quem ganha somos nós, seus leitores, vivendo todos os anos a felicidade antecipada de encontrar nas livrarias o livro que deixará satisfeito seu criador. Deus não está satisfeito com sua obra, Carrero compartilha dessa opinião. É preciso melhorar, é possível melhorar um parágrafo, uma página. Sempre. Ele sabe o que diz, disse a mim mais de uma vez sobre meus contos. Precisam melhorar! Sem dúvida. Carrero é obcecado pelo que faz, e dizer isso é dizer pouco, ele é o nosso Flaubert lá de Salgueiro para o Brasil, um dos pioneiros das oficinas de criação literária desmistificando o mito besta e romântico da inspiração como única prerrogativa do fazer literário. Viva o trabalho, diria Carrero, a labuta, o esforço que possibilita a transformação. Sem fanatismo não há boa literatura. Carrero é um fanático e é também um dos caras mais gentis que conheço, é daquele tipo de gente capaz de ligar pra você no meio da noite só pra perguntar se está tudo bem.

Está tudo bem sim. Estamos rezando por você, meu amigo, pedindo a Kafka que o proteja, a Henry Miller que não o desampare, a Zé Lins que não o deixe sozinho, pensando besteiras. Tudo vai correr bem, amanha vamos tomar aquela cerveja e dizer muita pilhéria.

Um comentário:

Adelmo disse...

Assim seja feita a vontade de Nivaldo e o desejo de trabalho de Carrero. Amém!