26 outubro 2011

amor sem fim

Amor sem Fim, último romance do muito talentoso McEwan é um Thriller psicológico baseado na obsessão de um louco que se coloca na vida de Joe Rose, um escritor de divulgação científica, e começa a persegui-lo, motivado por uma idéia fixa: o amor.

A fixação de Jed por Joe provoca a desarrumação na vida deste e um sentimento de sufocação e desconforto acabarão por prejudicar suas relações com a esposa. Clarissa não desconfia que o marido pudesse cometer adultério, na verdade ela não leva a sério as queixas dele quando diz estar sendo perseguido por um homossexual evangélico que se diz apaixonado por ele. Ela simplesmente não leva a sério, e atribui a outros fatores os receios de Joe. Mais tarde, com a insistência dele e mudança de humor ela vai nutrir uma suspeita também compartilhada pelo inspetor de polícia que toda aquela história não passa de invenção de Joe por causa do estresse, da frustração em não ter seguido a carreira acadêmica ou porque entrara num processo de loucura.

McEwan baseia-se num caso clínico estudado por De Clerambault. Uma francesa de 53 anos estava certa de que era amada pelo Rei Jorge V e por isso passou a persegui-lo fazendo diversas viagens à Inglaterra e se postando diante do palácio de Buckingham. É o achado de que o autor precisava para estruturar sua história. Nela Jed insiste que Joe o ama e como o amor é correspondido eles precisam ficar juntos. Mas não acho que ele quisesse apenas escrever mais um capítulo sobre a síndrome de De Clérambault. Vi no livro outra intenção que decerto causará despeito no religioso fundamentalista nem um pouco satisfeito com o fato de encontrar seu reflexo na figura esquizofrênica de Jed.

De uma boa obra literária pode-se fazer várias leituras, quantas leituras não há de Hamlet ou Dom Quixote?, ninguém portanto pode me acusar de nada quando faço a minha leitura de McEwan. Embora algo me diz que não estou tão longe do que quisera dizer o autor com o seu Amor sem fim. Algumas pistas me deixam seguro disso, por exemplo, McEvan é ateu, seu entusiasmo demonstrado por “Deus um delírio”, de Dawkins certamente não é compartilhado por nenhum fundamentalista, entre outros adjetivos ele se refere ao livro como lúcido, magnífico e sagaz. O personagem do livro, um escritor de livros e artigos científicos, um entusiasta da ciência com predileção justamente na área da evolução tem muito do autor com quem compartilha algumas opiniões, principalmente aquelas relativas a ciência e religião. Outro fato relevante é que não há histórico de doentes da síndrome que o sentimento religioso apareça como motivador, sendo o único (fictício) o caso de Jed.

Jed é um cristão fanático, mas não está associado a nenhuma religião em particular, McEvan é cuidadoso e certamente procura evitar a sanha de alguma seita cristã, detendo-se no fato de que Jed é cristão e vê a Deus de um modo pessoal. O deus de Jed é o cristo, aquele que fora pregado na cruz e ressuscitou, mas ao mesmo tempo é o cristo inventado por ele, seu deus pessoal. A verdade de Jed não é a verdade de Joe, mas Jed não está interessado nisso porque a única verdade – aquela que salva – é a verdade representada pelo cristo de Jed que precisa ser compartilhada. O outro não tem opção, deve aceitar aquela verdade como única e indiscutível sob pena de sofrer as conseqüências. A insistência dele em dizer que a vida de Joe esta errada – numa clara referência à Clarissa – que Joe não é feliz, não é a insistência de um louco – não nos termos patológicos em que Jed se enquadra – são na verdade as palavras de um religioso (é só ligar a televisão na madrugada, entre os muitos anunciantes e seus produtos vendidos estão os padres e pastores evangélicos vendendo o patético cristo pregado na cruz) o que Jed diz é o mesmo o que diz tais clérigos; que não podemos ser felizes sem Jesus, que a sua vida, a de Joe, não pode ter sentido sem Jesus, porque uma pessoa sem Jesus experimenta um grande vazio existencial.

É engraçada a indignação que Jed experimenta quando lê os artigos escritos por Joe e nota que ali o escritor compara Jesus com personagens literários. Fica indignado, e é a mesma indignação que muitos religiosos demonstram quando lêem em textos de blogs, por exemplo, comentários onde Jesus aparece comparado com personagem de literatura. Comparar Jesus com James Bond, diz Jed, ou com Sherlocky, faça-me mil favores.

Quem se declara ateu ou agnóstico – uma péssima idéia mesmo nos dias de hoje – sempre recebe do religioso a mesma acusação: arrogante. Então é arrogância dizer que Deus não existe e admitir a idéia de que somos finitos e que um dia vamos morrer. Mas os religiosos não são arrogantes quando dizem que são filhos de Deus – o todo poderoso criador do céu e da terra – também não é arrogância se achar parecido com Deus (imagem e semelhança) que nos fez para um propósito divino – somos protagonistas no universo – por isso subjugamos a morte – quem é o Railander do pedaço? – e não bastasse tanta megalomania ainda vamos no sentar no trono à direita de Deus Pai, Todo Poderoso – pense num trono grande – porque pagamos o dízimo e observamos o decálogo, principalmente o último de grande sabedoria e valor moral: “Não cobiçarás a casa do teu próximo nem sua mulher, nem seu escravo, sua escrava, seu boi, seu jumento etc...”. É preciso, portanto, aprender a ser humilde para nos acostumar com a vida futura, sem nenhuma preocupação ou necessidade, sem nenhum padecer e dispondo de toda sabedoria partilhada nos mínimos detalhes com o Arquiteto do Universo.
Quando Jed lê os artigos de Joe não deixará de atirar em sua cara a acusação de arrogante.

Quando Jed diz: aceite-me Joe, na verdade ele está dizendo: aceite Jesus em sua vida, aceite a religião. Esqueça suas idéias a respeito da evolução, esqueça aquilo em que você acredita, renuncie a ciência. A ciência distorce a verdade, inventa verdades para nos ludibriar e nos afastar de Deus, para nos tirar do caminho, o caminho correto, único e possível.

Falando de “Sábado”, outro romance de McEwan, eu disse numa ocasião que diferente de Borges ou de Machado de Assis que optam por uma espécie de narrador escorregadio em quem não se pode confiar, o autor de “Sábado” se concentrava num tipo de escritura que eu relacionei com Eça de Queiros e os realistas do século XIX; o narrador em terceira pessoa, onisciente que tudo vê, que tudo sabe. Em “Amor sem Fim”, por outro lado, McEwan se mostra um escritor que teria a aprovação de Machado de Assis e Borges. A perseguição de Jed só pode ser coisa de um louco, Joe está certo disso, mas a habilidade do autor nos faz desconfiar de Joe; e se tudo não passa da imaginação de Joe? E se Jed for apenas fruto de sua imaginação de homem que chegou à metade da vida com algumas frustrações e o casamento que parece desmoronar? Clarissa desconfia e sua desconfiança nos contamina. Mas no final tudo é esclarecido, desaparece a ambigüidade e a loucura de Jed se revela para todos. Devemos desculpas a Joe por desconfiar dele. Clarissa mais que todos nós. Mas não poderia ser diferente – e aqui faço minha leitura – não poderia haver ambigüidade, Joe é McEwan e sua sanidade não poderia ser questionada, não num assunto que trata de evolucionistas versus religiosos. Acho que não é por acaso que Christopher Hitchens dedica seu “deus não é Grande” a Ian McEwan.

Nesses tempos de terrorismo quase sempre associado à religião, de republicanos americanos que declaram guerra em nome de Deus – como, aliás sempre fizeram aqueles que se apresentam do lado do bem e da boa moral – , tempos de Osama Bin Laden, de judeus contra muçulmanos, de sérvios ortodoxos contra croatas católicos, sérvios ortodoxos contra muçulmanos bósnios e albaneses, protestantes contra católicos, muçulmanos contra hindus como acontece no Sudão, russos ortodoxos contra muçulmanos chechenos etc, McEwan nos presenteia com uma história que é a perfeita representação dessa histeria.