03 agosto 2010

curso de leitura

Acho que falta um curso de leitura. Sim, um curso. Há curso para tudo, até para... Não, não vou dizer. Não quero ofender a ninguém. Todo mundo tem o direito de fazer o curso que quiser. Pois então, por que não há um curso de leitura? Isso mesmo, você ouviu bem: leitura. As pessoas não sabem ler, e isso não é novidade, fala-se em analfabeto funcional, o sujeito que sabe juntar as sílabas, soletrar e formar a palavra que é pronunciada por ele num gesto mecânico. As palavras formam a frase, oração, parágrafo e aí o nosso amigo se embaralha todo e não consegue entender o que acabou de ler.

Tudo bem, esta é uma discussão, válida, sem dúvida, mas não é desse leitor – sem dúvida nenhuma aquele que mais carece de atenção – de quem desejo falar, mas de outro, um caso, talvez, menos complicado e que tem sua problemática – menos caótica –situada numa outra esfera. Falo do leitor médio. Ele sabe juntar as letras e formar as palavras, frases e orações e, diferente do outro, entende o que lê. Seu ecletismo lhe permite passear pela ficção e não raro a poesia. Comparece a lançamentos de livros de poesia, tem amigos poetas e sabe de cor pelo menos um soneto de Augusto dos Anjos. Gosta de romances, apesar de opiniões como a de um amigo advogado, formado num conceituado curso de direito da capital, que considera esse tipo de leitura uma perda de tempo. Ele – o tal amigo bacharel – não sabe, mas repete com suas palavras um axioma de Oscar Wilde. Pois bem, o leitor, esse sujeito que se senta para ler um livro sem futuro, como são os livros de literatura, normalmente perde tempo mesmo, mas não pelas razões sustentadas pelo senhor pragmático, e sim porque não tem critério, lê o que lhe cai às mãos e não distingue um autor do outro; pra ele livro é livro, as duas capas guardando o miolo de algum modo conferem legitimidade às palavras ali impressas.

Imagino esse leitor diante de enormes prateleiras de uma grande livraria. Ele vai à livraria e se sente o mais notável dos homens, um sujeito raro, pertencente à fina flor de uma sociedade sob a égide da cultura. Seus confrades são homens e mulheres – uma minoria, certamente – abnegados defensores de certo ideal dos antepassados, hoje vilipendiado pelas gerações mais novas. De fato, ele vai à livraria, cumpri um ritual, pois é um iniciado da tal sociedade, mas quando se vê diante das prateleiras de livros compreende como ninguém o significado da palavra Babel. As lombadas, com nomes de autores e obras não lhe dizem nada, ele se sente confuso, sente uma vertigem e é preciso ser levado às pressas ao banheiro onde vomita por dez ou vinte minutos. Quando se sente recobrado, atribui à indisposição os efeitos de uma intoxicação alimentar. Naquele dia desiste das prateleiras, vai ao mostruário e pega o primeiro livro escrito por bruxos ou espíritos desencarnados que encontra. Paga com o cartão de crédito e sai da livraria aliviado do vômito e da incursão no mundo de babel.

Não há exagero, é mais ou menos esse o perfil do leitor médio brasileiro. Ele não conhece a produção do passado – os clássicos – tampouco a da chamada pós-modernidade ou contemporaneidade. O sujeito afirma que leu uma edição resumida do Dom Quixote – dos tais famigerados paradidáticos – e nem se dá conta do sacrilégio cometido. Os eventos de literatura que se espalham pelo país, como a Flip, reúnem de um lado escritores consagrados que desenvolvem suas falas para aspirantes a escritores, jornalistas culturais, editores ou professores da área de letras que trazem seus alunos – alguns muito bem intencionados, outros nem tanto – como parte integrante de algum projeto pedagógico de incentivo à leitura blá, blá, blá. Nesses eventos, os escritores mais famosos não passam de ilustres desconhecidos. No país inteiro, segundo Marçal Aquino, existe uma média de 1000 leitores potenciais, isto é, aquele que não se enquadra em nenhuma das categorias mencionadas anteriormente, e mesmo assim cultiva o hábito de ir à livraria, onde escolhe um bom livro e o compra com a mais genuína intenção de ler porque isso lhe causa prazer. Ainda estamos naquela de nos comparar com a Argentina e nos espantar com o número de livrarias de Buenos Aires; uma para cada seis mil habitantes, contra uma para cada setenta mil brasileiros. É um saco, muita gente não gosta de tocar nesse assunto, fazer o quê?

O leitor médio devia aprender com aquele cara que gosta de futebol. Ele não joga nada, é perna de pau, mas tem seu time do coração, uma paixão que influenciou a esposa e os filhos _ às vezes a esposa é quem influencia o marido – pois bem, o cara não joga nada, não é jogador, treinador ou cartola, mas está por dentro de tudo, é capaz de fazer um diagnóstico da situação de seu time bem como dos adversários. Acompanha os campeonatos estaduais, nacionais e internacionais, sabe a escalação do time e se amarra nos programas de televisão especializados em comentar lances, além do caderno de esporte, o melhor caderno do jornal, o único lido do começo ao fim.

Coisa muito diversa acontece com o leitor médio. Ele não assiste a nenhum programa de televisão que entreviste o escritor, não lê o jornal que traz resenhas de livros, não compra nem lê revista especializada no assunto nem pertence ao clube do livro, por isso não conhece nenhum escritor. Muitas vezes acontece de estar lendo um livro e quando lhe perguntam o autor ele não sabe responder, diz que não se liga nessas coisas. Nunca compra livro; compartilha a opinião de que o livro é caro, não importa quanto sejam seus rendimentos, se de um salário mínimo ou cinqüenta. Desconhece as edições de bolso ou aquelas que contam com a participação de algum fundo de apóio à cultura, como foi o caso da belíssima coleção de Grandes Escritores da Atualidade, da Planeta DeAgostini; nomes como Saramago, Ian McEwan, Ernesto Sabato, Ítalo Calvino, Rubem Fonseca, entre outros, editados no melhor papel, capa dura e de excelentes traduções ao preço módico de dezesseis reais, adquiridos na banca de revista. Esse leitor lê o que lhe cai às mãos – já que não compra. Não estabelece um padrão, não distingue Stephen King de Philip Roth, seu nível de leitura não progride, de vez em quando – quando alguém lhe empresta – lê reportagens ou biografias de famosos, mas sua paixão mesmo são os livros de auto-ajuda.

É por isso que eu sugiro um curso. Um curso de iniciação à leitura, uma coisa que já acontece nas oficinas de criação literária, Carrero que o diga. Mas não falo de um curso para quem deseja escrever, mas para quem deseja lê, que a leitura é uma arte tão importante – decerto mais prazerosa – quanto a escrita. Uma vez eu li uma frase escrita numa dessas revistas de divulgação de literatura, a frase é curiosa e se aplica aqui: não devemos ler os bons livros, dizia a frase, mas os ótimos. É isso o que quero dizer com curso de leitura; os leitores precisam entender que há muita coisa boa a ser lida, mas a vida da gente não ajuda, é curta. E aí, paciência, não adianta culpar Adão, o tempo é finito, sejamos criteriosos em nossas escolhas.

7 comentários:

Anônimo disse...

Excelente ideia, Nivaldo, um curso de leitura para fazer os leitores conhecerem as "palavras" sob a melhor das intenções do autor.

Outra coisa que ajudaria muito a leitura, quando se tratar de obras traduzidas, é a fidelidade com as palavras, expressões e ideias que o tradutor deve passar para o leitor. Para exemplificar melhor isso, gostaria de me reportar a um caso específico que é a tradução do "Ulisses", do James Joyce, feita pelo conceituadíssimo Houaiss e a mais recente tradução por Bernardina. O nome Houais é de muito peso, e quando se depara um Houais com um Joyce, isso faz muitos leitores se afastarem cada vez mais de uma leitura deste, chegando muitas vezes a se ter um preconceito de qualquer outra tradução. No entanto, a nova tradução é digna de elogios e nos faz rever velhos conceitos. Estudos apontam que Houais errou em muitas passagens da tradução de "Ulisses", chegando até a inventar expressões para passar a tradução. A Bernardina nos apresenta um "Ulisses" com uma grande possibilidade de uma leitura fácil, digo fácil para aquele tipo de leitor um pouco mais amadurecido ou que, no mínimo, já teria passado pelo tal curso que Nivaldo propõe sobre leitura (risos).
(Ivaldo Tenório)

Joaquim Rafael disse...

Crudelíssimo, mas, infelizmente a mais cristalina verdade. Faltou apenas alusão aos professores (mestres ou doutores) que só conhecem os manuais das disciplinas que ensinam, todavia se dizem grandes leitores, e compradores de livros. Tenho ouvido coisas de arrepiar. Há alguns meses conheci um que fez mestrado na Universidade de Salamanca - dormia no alojamento Unamuno -, dominava com folga o catalão e o espanhol e sequer teve a curiosidade de folhear uma obra de Dom Miguel! Para quê? Não iria entrar na sua dissertação. Então? Para ele Miguel Unamuno será apenas a lembrança da estátua no campus de um antigo reitor que encrencou com a guarda civil espanhola. Lembra de Martha Traça, personagem escritora do nosso finado Correio das Sete Colinas? É dela o bordão que me ocorre sempre nessas ocasiões: livro só serve para juntar pó!
Abraço.

Joaquim Rafael disse...

...Perdão, digo, Correio das Sete Calúnias!

Helder Herik disse...

Quem ler se livra do inferno.

Ars von OTheles disse...

Estatísticas precipitadas: o Brasil é imenso e tem vários países dentro (em italiano o termo é igual p/ províncias ou estados e países: paese. Seria mais aplicável ao Brasil e não a um país pequeno como a Itália). Quando se vai aos números, os rincões pobres tiram o Brasil do pódio. E não se pode comparar Buenos Aires com Brasil. Compare com Argentina e quando entrar os bolsões pobres do interior, fica mais parecido.

Livro não serve apenas p/ juntar pó. Serve também para encher as prateleiras que ficariam muito feias, vazias.

Negro Sangue disse...

O caso ainda é mais sério! As famílias - de modo geral - não têm uma cultura voltada para leitura. As crianças ingressam na escola e esta não possui um número suficiente de profissionais aptos à despertar o interesse pela leitura. Após o seio da família, são dos níveis básicos de escolaridade a competêcia de formar novos leitores, mas como influenciar para o hábito de ler se quem é responsável por isso na escola não demonstra a mínima afinidade com a leitura, o mínimo interesse por ela? É um vício - nas Instituições de Ensino Superior -, da maior parte dos alunos, de querer ser lingüísta, ingressam na Universidade ou Faculdade com o discurso de que querem trabalhar com a língua. E pergunto: o que seria da língua sem a Literatura? E ainda: é possível estudar uma língua desvinculada de sua literatura? Acredito que esta opção é por falta de competência, ou no mínimo covardia de enfrentar as dificuldades de enveredar por um caminho no qual não se teve uma iniciação.
É triste, mas a situação só parece recrudescer.

Erick Camilo

Adelmo Camilo disse...

Nivaldo, vamos atualizar o blog. Todo dia eu venho visitar e nada. Ou vc tá dando curso de leitura por aí?