22 junho 2009

Junichiro não é Machado

Junichiro não é Machado de Assis. Não tem a mesma habilidade de fazer com que o leitor se sinta pisando em terreno movediço. No romance A Chave há dois diários, escritos por personagens influenciados pelo mundo dos sentidos. Em dado momento é coerente desconfiar da sanidade dos autores. Mas as desconfianças nascidas da verdadeira autenticidade dos escritos não aparecem senão no final do livro. Aí descobrimos que Ikuko mentia quando afirmava que insuflou ciúmes ao marido para fazê-lo esquecer-se do medo da morte.

Na obra machadiana o leitor é posto à prova. Depende dele aceitar ou não. É sua argúcia que determinará o quanto participará ou não da construção do texto. Isto, entretanto, não quer dizer tudo. O Bruxo nos lança um desafio, como o da esfinge, mas ao contrário de Épido, não matamos a charada e somos devorados. É assim que nos sentimos diante do julgamento do adultério. O processo ao qual nos submetemos como juízes do verdadeiro caráter de Capitu ou a loucura de Bentinho revela-se no final uma difícil probabilidade matemática.

Junichiro não vai tão longe, mas não há como negar a complexidade das personagens. Se a ambigüidade nos acompanha ao longo da narrativa de Machado, em Junichiro ela é só uma silhueta que aos poucos vai tomando forma e só aparece no final. No final o autor nos deixa em dúvida sobre a real natureza do relacionamento de Kimura e Toshiko. Para além da trama de assassinato do marido perpetrado por Ikuko, haveria outra trama, não anunciada, do jovem casal? Por que foi o relacionamento adúltero da mãe facilitado pela filha? Estaria sendo Ikuko vítima da vontade de Toshiko e Kimura que secretamente contribuíram para aquele desfecho?

Nas últimas páginas do livro, Junichiro me lembrou Machado de Assis – por isso a comparação – senti de repente o terreno movediço, uma característica sem dúvida do romance moderno, praticada - e ainda não superada - pelo Machado de Assis nos últimos suspiros do século XIX.

Um comentário:

Mário disse...

Eu sou o filho da noite medieval e da noite nova-iorquina. Uma ponte lançada entre dois abismos. Talvez um começo assim, pensa o homem de finos óculos com armação dourada, ou talvez não...

Atravessou o bulevar de Rochechouart.

Fazia pouco que a neve começara a cair. Ela salpicava a noite com uma infinidade de pontos brancos que desciam rodopiando. Mas em nenhum momento ele pensou em abrir o guarda-chuva ou erguer a gola do casaco. Aquele começo o perseguia. Tudo dependia do incipit. Se o leitor não fosse fisgado desde as primeiras linhas, tudo estaria perdido, ele fechava o livro e ia atrás de outro. Essa idéia o desnorteou. Mas era evidente: as prateleiras das livrarias estão abarrotadas de livros. Há entre eles uma guerra desencadeada a golpes de incipit. Primeiras linhas contra primeiras linhas. Desde o começo, em duas frases incisivas, percucientes e corrosivas, deve-se pegar o leitor com uma bela ação, criar uma atmosfera, envolvê-lo com algumas personagens e deixá-lo morrendo de vontade de saber o que vem depois.

A batalha, geralmente, se ganha com duas frases...

(Jean-Pierre Gattégno, "Um lugar entre os vivos")

OU SEJA: os bons escritores são "malas", eles pensam em tudo. Tudo. E nada é gratuito. É tudo uma grande equação; e o problema e a solução são nossos.