21 junho 2009

Da tradução

Segundo Borges, o que fez o Dom Quixote subsistir no tempo não foi o estilo do autor, pois não há nenhum. Mas tão somente seu aspecto psicológico. De fato ninguém precisa fazer uma leitura mais atenta do livro do Cavaleiro da Triste Figura para perceber ali desorganização, capítulos inacabados, parágrafos intermináveis, desencontros etc. A impressão que se tem é que Cervantes jamais releu seu romance.

Senão toda, mas alguma razão tem o escritor argentino. De fato se é o estilo composto em grande parte pelo manejo com as palavras, possível somente com a utilização da Língua de que se está valendo e que uma tradução, mesmo a melhor de todas, não reproduz o texto original – porque uma língua não encontra correspondência fiel na outra – e que desta forma perdem-se justamente os artifícios verbais do estilista, como explicar que uma obra sobreviva a todo tipo de tradução descuidada? Em seu livro Borges cita o poeta Heine que nunca leu Dom Quixote em espanhol, mas o celebrou para sempre.

Alguns escritores não acreditam mais no estilo. Raimundo Carrero é um deles, costuma afirmar que é a personagem quem tem estilo. Acho que o conceito de estilo ficou abstrato. O fato é que Borges me deixou mais à vontade com as traduções. Tanto é que leio autores japoneses despreocupado com a correspondência das línguas. É verdade que estou atento para as boas edições, e sei que apesar do conforto que as palavras de Borges representam para quem fala uma só língua, é melhor ler uma boa tradução do que uma tradução qualquer.

Um comentário:

Mário disse...

Há um discussão interessante acerca de tradução envolvendo a frase que Melville utilizou pra abrir o "Moby Dick": "Call me Ishamel". Traduções clássicas vertem por: "Chamai-me Ismael". Mas, perceba, a frase soa anacrônica. Já: "Me chamem de Ismael". É mais legal - tem mais a ver com o estilo do personagem. Porém será que traz o aspecto épico-bíblico que Melville queria dar ao texto? O que conforta é que a história se sustenta para além de escolhas pessoais dos tradutores. Como em todo grande livro, aliás.