27 junho 2009

Sábado

O romance de Machado de Assis é considerado Realista mais por uma questão cronológica do que em razão de sua fidelidade ao estilo de época do século XIX. Sua habilidade de deixar incrédulo o leitor a respeito das reais intenções do narrador deu-lhe fama de escritor que antecipou – no Brasil – o romance moderno. De fato é visível a preocupação do criador de Capitu com o não dito e a ambigüidade. Machado de Assis não é citado por Borges como é Eça de Queirós. Pra mim isso só encontra explicação na pouca familiaridade do escritor argentino com autores de língua portuguesa, mais especificamente do Brasil. Há muito de Machado de Assis na obra de Borges. São autores com preocupações parecidas. Poderia ser de Machado de Assis a recomendação que deve o narrador contar uma história como se não estivesse totalmente inteirado dos fatos. Machado é sem dúvida um escritor que se enquadra perfeitamente na poética da obra aberta de Umberto Eco.

Entre muitos escritores, esse é o caminho para se produzir boa literatura.

Machado de Assis é como aquele atleta que não teve ainda seu recorde quebrado. Ele subverteu o século XIX e antecipou o século XX. Isso, entretanto, não quer dizer que o Bruxo tenha feito algo original. Outros escritores, antes dele, como Laurence Sterne, fizeram o mesmo. Acho que o grande mérito de Machado está no fato de se apoderar de uma técnica e nela por sua marca.

Estou lendo Sábado, romance de Ian McEwan sobre a piração do povo inglês e americano depois do Onze de Setembro. Ao longo das 330 páginas, acompanhamos um dia – o sábado – na vida de Henry Perowne. Neurocirurgião de um importante hospital de Londres. Ele é casado com Rosalind, uma destacada advogada. Seu sogro é um poeta indicado ao Nobel e seus dois filhos, Daisy e Theo são o máximo em matéria de filhos; ela uma poeta promissora, ele um astro pop. A única mácula na vida cor de rosa de Henry é sua mãe, internada num abrigo para velhos, com algum tipo de degeneração neurológica em estado bem avançado, mas o desconforto que ele sente ao visitar a mãe é coisa passageira, basta dirigir seu carrão pelas ruas de Londres e logo a mãe e tudo aquilo que ela representa de incômodo ficam para trás, no abrigo, sob os cuidados de uma enfermeira que o trata de doutor e por causa de sua condição de médico, merece cuidados especiais extensivos à sua mãe, a paciente.

A primeira coisa que me chama a atenção no romance é que McEwan, ao contrário de Machado de Assis e seu narrador escorregadio, Borges e o não dito, Umberto Eco e sua ambigüidade – que eu estou convencido de que são elementos fundamentais para uma escritura satisfatória –, é que ele parece ir na contramão. O discurso é na terceira pessoa e o narrador onisciente que tudo sabe e tudo vê não deixa escapar nada e debulha para o leitor o fundo do âmago de Henry e nos revela todos os pormenores de seus pensamentos, medos ou frustrações. Não precisamos supor nada. Tudo está esclarecido, terminamos o romance com a sensação de que conhecemos o personagem há pelo menos trinta anos.

Ian McEwan acompanhou a rotina de um neurocirurgião de verdade durante dois anos. Os detalhes que nos fornece sobre a rotina de tal profissional o ajudaram a compor seu personagem e deu-lhe tal verossimilhança capaz de deixar satisfeito qualquer sociólogo. Sobre o médico e sua relação com o hospital – ele descreve o lixeiro onde são depositadas as roupas cirúrgicas descartáveis com riqueza de detalhes –, ficamos familiarizados com tudo, desde a terminologia empregada no trato com doenças, remédios, procedimentos e equipamentos cirúrgicos a hierarquia entre médicos e residentes.

Parece que estamos lendo um escritor do século XIX sem as preocupações de Machado de Assis, um Eça de Queirós, capaz de compor um quadro sobre o qual nenhuma suspeita paira. Um grande romance de um realista do século XXI.

Um comentário:

Mário Rodrigues disse...

McEwan é a personificação de tudo aquilo que discutimos antes: quem tem essa necessidade doentia de metalinguegem, de desrespeito à sintaxe, de ser "moderno", são escritores miúdos de rincões subdesenvolvidos... Se McEwan escrever um noir clássico: será o maior escritor do mundo.