16 março 2009

O Deserto dos Tártaros



O Deserto dos Tártros de Dino Buzzati é um desses livros que não foi feito para entreter – um objetivo indigno da arte, diria Ernesto Sabato – mas para causar perplexidade, assombrar. Não sei não, mas se alguém me perguntasse o que achei do livro, eu diria que é uma das mais perfeitas metáforas da vida do homem moderno.

Um jovem tenente, depois de formado, é apresentado num forte, uma construção antiqüíssima e desolada. Ali, vivendo o absurdo de uma rotina militar, se vê pouco a pouco amalgamado ao quartel, incorporado às suas paredes, condicionado aos limites de sua geografia. O forte fica na fronteira, depois dele se descortina um grande deserto por onde, diz a lenda ou contam os mais antigos (como numa tela impressionista, a realidade é vaga e imprecisa) os Tártaros atacarão.

A não ser para alguns – talvez menos infelizes do que outros – que baseados no que chamam de fé ou esgotamento parecem encontrar as respostas fundamentais (Quem sou, de onde vim, para onde vou) a maioria ainda não divisou o fim do túnel. É preciso, portanto, encontrar um sentido para a vida. Esse sentido não é o mesmo para todo mundo, cada um o vê segundo critérios muito pessoais. É aquilo que satisfaz, que anima, seduz ou tornam as coisas especiais. Alguma coisa sobre a qual possamos dizer depois de uma longa espera: valeu a pena. Os militares presos à rotina no forte esperam pelos tártaros, os tártaros e a guerra farão deles heróis, justificarão o sacrifício, a solidão, o frio e o tédio.

Esperamos. Alguma coisa de especial nos acontecerá, justificará porque estudamos tanto, porque trabalhamos tanto, porque juntamos dinheiro, porque compramos as coisas, trocamos o carro e ambicionamos ser mais, muito mais do que o nosso vizinho. “Sentimos uma sensação inexprimível de coisas futuras”, apesar do medo, um medo tremendo de que não passemos de “um homem comum, a quem por direito não cabe senão um destino medíocre”. Quando a leitura do livro se apodera da gente não temos escolha e acabamos nos perdendo (num nevoeiro? Dentro de nós mesmos?) e quando a densa nuvem se dissipa e já não podemos ouvir som nenhum, encontramos uma criança, a criança que fomos nós. Ela ri. Está diante de algo maravilhoso, sente-se parte dela. A criança sabe – nós sabíamos – não há ninguém como ela. Sente-se especial e jamais duvidaria de que o mundo só existe em função dela. Não se satisfaz com o comum das especulações, tem mesmo certeza, embora a ninguém confidencie, de que é um ser especial vindo das estrelas ( Super Homem) a quem seus pais adotivos criarão com amor sem nunca revelar o segredo de sua origem.

Então acontece um fenômeno sobre o qual não nos haviam alertado. Crescemos e o encanto é quebrado. A certeza de que somos especiais pouco a pouco soçobra.

Nos anos que se arrastam os militares não mudam de patente – nos mais de trinta anos de serviço, Drogo, o jovem tenente, mal chega a major – uma sensação, mais forte do que o verdadeiro fato nos diz que o tenente é sempre tenente ao longo do correr dos anos, o capitão não aspira a ser major. O major nunca foi outra coisa. O coronel idem, com sua luneta na mão, perscrutando o avanço dos Tártaros impossíveis. Isso, entretanto, está longe de parecer a construção de personagens estereotipadas. Tem a ver com o tempo, reforça a idéia de que ele não nos traz benefício, nada de especial nos acontece (nem uma promoção). Tudo de bom que tivemos ficou para trás. Super Homem é apenas um herói em quadrinhos, e ai ficamos muito próximos de descobrir que o mundo não precisa da gente, que nossa morte não mudará o curso da história.

A todo o momento o autor parece nos lembrar o relógio que marca o tempo, o tempo célere, inexorável, sem nos alertar para nenhum tipo de “carpe diem” porque o momento presente não nos convida para o prazer; não há prazer, só insatisfação. Esperamos por algo melhor, o presente não nos basta, ele nos aponta para o homem no qual nos transformamos, o homem de agora, longe de seu sonho, desmistificado, idiotizado, frágil, medíocre.

Alguns episódios remontam a radiografia do absurdo militar, um absurdo muito próximo de Kafka, como aquele quando uma sentinela atira e mata o companheiro que se aproxima do posto esquecido da contra-senha. Mas o romance não é sobre a vida na caserna, embora se valha dela para ambientar a história, mas a vida mesma, de todos nós homens e mulheres em nossa transição do nada para o esquecimento esperando por algo especial que nunca vem.

Nenhum comentário: