04 março 2009

A cada um o seu


Fui apresentado a Leonardo Sciascia, (ler-se xaxa) por Adolfo Bioy Casares. É sempre assim, um autor nos apresenta outro com quem dialoga e se nos interessou o livro daquele, logo desejamos o deste. Eu já conhecia Borges – todo mundo conhece Borges – e foi ele que me apresentou a Bioy. Mas foi um período relativamente longo entre aquela apresentação e meu primeiro contato com seus livros, somente no ano passado, numa edição da Cosac Naify, conheci “A Invenção de Morel” e há bem pouco tempo, comprei a belíssima edição, também da Cosac, de suas “Histórias Fantásticas”.

Numa entrevista concedida à Roda Viva, por ocasião de seus 80 anos, e exibida em 1994, mas que eu só tive acesso outro dia, acessando o YouTube, o Bioy me surpreendeu. Foi como o Borges, um homem distinto, dizem que mulherengo; Borges parece que menos, e devotou sua vida, como seu companheiro, à literatura. Como o outro, conheceu mais literatura inglesa do que argentina, mas foi sobre escritores de seu país que me surpreenderam suas declarações quando taxou “Sobre Heróis e Tumbas” de Ernesto Sabato como livro regular e quanto ao Ricardo Piglia, hoje um dos escritores mais importantes da Argentina, foi quase deselegante situando suas teorias sobre o conto num campo entre a extravagância e o absurdo.

Mas deixemos essas considerações para outro dia.

Outra coisa que me chamou a atenção na entrevista do Bioy foi o entusiasmo que ele manifestou quando citou um italiano, contemporâneo seu e de Ítalo Calvino, o Leonardo Sciascia. Naquela mesma semana comprei um livro, editado pelo novo selo Alfaguara que traz um título curioso, sugestivo: “A cada um o seu”. O livro é fino, não passa de 135 páginas. Li no mesmo dia. O autor parece no início se valer do formato policial para ambientar uma história que se passa numa cidadezinha da Sicília, pacata e simples onde muito provavelmente nada de interessante ou anormal pode acontecer. Mas acontece, ou pelo menos temos essa impressão logo no início quando ficamos sabendo que a ameaça de um crime, anunciado numa carta anônima e endereçada a um pacato farmacêutico de fato é consumado.

O farmacêutico Manno não acredita na ameaça, considera brincadeira e na manhã seguinte, acompanhado de seu colega sai para caçar e é morto ele e o outro. O crime, claro, choca a todos e deixa a polícia desnorteada. Começam as indagações, seria mesmo o farmacêutico um homem pacato e sério? Não estaria ele envolvido com uma mulher casada ou coisa do gênero? Todo mundo agora tem um motivo para comentar, e a vida sem graça do Vilarejo se enche de inquietação. É interessante o capítulo em que encontramos a senhora Teresa Spanò, viúva do farmacêutico, escolhendo uma foto do falecido que seria reproduzida no túmulo. Diante das especulações sobre o caráter do marido, ver-se consumida pela dúvida.

Entre os circunstantes conhecemos a figura do professor Laurana, solteirão e solitário que se interessa pelo crime e acaba se embrenhando cada vez mais numa trama que pouco a pouco vai revelando seus meandros, e isso acontece não pela habilidade ou artimanha do detetive, não há detetive, só um professor, mas pela confirmação do óbvio. Na metade do livro um leitor atento já estará em condições de matar a charada. Depois disso, seria comum dizer que em se tratando de um livro de trama policial dos mais simples, o interesse do leitor desapareceria, o que não é o caso do livro em questão. O leitor já adivinhou tudo, mas se recusa a aceitar porque admitir isso é perder um pouco a fé no gênero humano, é alimentar seu ceticismo, é encontrar motivo a mais para ser infeliz. O título do livro de Sciascia é interessante, sugere partilha. O que cabe a cada um? Diferente do poema de Drummond, Cota Zero, o autor de “A cada um o seu” não se sai com uma ironia diante do dilema, não há esforço para disfarçar a verdade, ela nos é jogada na cara.

Sciascia faz parte de uma tradição de escritores a quem interessa a figura do homem comum metido no seu dia-a-dia. É esse o herói de seu livro, como um dia foi Aquiles herói de Homero. Se a literatura do passado privilegiou um tipo de herói superior às vicissitudes que atormentam o homem comum, à literatura na qual se filia Sciascia, a mesma literatura de Joyce e Graciliano Ramos, está interessada justamente nesse homem comum, talvez nosso verdadeiro paradigma.

A atmosfera de segredos e mentiras, a figura de um detetive que se orienta apenas pelas circunstancias de pistas deixadas quase ao acaso, uma bela viúva e seu primo importante e a suspeita de que “há algo de podre no reino da Dinamarca” é o mote que Sciascia utiliza para escrever um livro paradoxal porque divertido e fácil de ler ao mesmo tempo em que nos deixa um travo na garganta.

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