02 junho 2009

Simenon

Na última semana me deu vontade de ler um bom romance policial e aí me decidi pelo Simenon. Comecei com O Caso Saint-Fiacre, e acompanhei Maigret de volta à sua cidade natal. Nela o Comissário reencontra personagens antes inacessíveis, quando ele era garoto pobre, filho do administrador do castelo.

A condessa está morta, mas antes disso, ela e o castelo e a nobreza que um dia representou, entraram em franca decadência. Seu filho, o herdeiro de coisa nenhuma, vadio e por aqui de dívidas, é suspeito, bem como o secretário da condessa com quem ela mantinha relações inadequadas – causa de indignação e revolta dos mais pudicos habitantes do vilarejo.

O mundo que Maigret conheceu e do qual provavelmente ainda conservava alguma impressão desde quando deixou aqueles cafundós, desaba. Os últimos vestígios sobreviveram até sua vinda, quando deixou seus afazeres em Paris e fez aquela viagem que é também uma viagem sentimental, embora às avessas; desmistificadora.

É trazido ali motivado pelo trabalho de detetive. Precisa solucionar um crime que ainda não aconteceu. Um crime anunciado. Aliás, algo sem muito sentido, que não fica nem um pouco esclarecido já que o assassino não é um serial killer narcisista e tarado por ibope. Tal excentricidade será sua perdição. Não fosse ela teríamos o crime perfeito em que um assassino sequer suja as mãos, senão de tinta. A vítima cai fulminada por um ataque do coração depois de ler uma notícia prestidigitada, intencionalmente deixada ao seu alcance.

O assombro de Maigret diante de seu mundo de infância que desmoronou é a tônica maior do livro. O caso do assassinato fica em segundo plano – nem é solucionado por ele – Simenon não corrigiu as impropriedades nem ligou importância para um detalhe e outro inverossímil, e nele, assim como em Cervantes, tais “descuidos” não foram capazes de macular o romance que sai incólume, possibilitando-nos mais uma leitura da alma humana.

27 maio 2009

Conceito

Sempre que é publicado um novo livro de escritor brasileiro – conto ou romance – sentimos uma expectativa: Será um novo Guimarães Rosa?

O consenso mais aceito é que nas últimas décadas tivemos de nos contentar com produções razoáveis. Nada de excepcional. Há quem diga que os escritores de hoje chegaram tarde demais. Vieram depois de Shakespeare, Cervantes, Dostoievski, Machado de Assis etc. Ou talvez fomos nós que nos tornamos mais exigentes ou confusos por efeito dos novos tempos – plurais desde as Vanguardas – e que têm nos oferecido um número considerável de obras que não se encaixam num mesmo gênero nem estilo de época.

E o que é ser genial?

Quando o escritor segue os paradigmas é julgado pela sua incapacidade criativa, se envereda pelo experimentalismo corre o risco de parecer tradicional, superficial ou ridículo. A partir de quais critérios podemos julgar se uma obra é experimental? Ou mais ainda. O que é ser experimental depois de Joyce, Beckett, Marcel Duchamp ou Haroldo de Campos?

Há dois bons, justos e criteriosos julgamentos de livros. O primeiro é de Oscar Wilde: Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito, diz ele. O outro julgamento é de Ernesto Sabato: O bom livro não foi feito para entreter, mas para causar perplexidade. Situo o meu ideal de livro levando em consideração esses dois conceitos, principalmente o último.

Recentemente li dois livros de autores brasileiros. Em Galiléia do Ronaldo Correia de Brito e O Filho Eterno de Cristóvão Tezza, pude reconhecer que os autores foram felizes em tratar do humano. Não são livros para entreter, mas para causar perplexidade, como queria Sabato e não fazem parte desse monte de porcaria que figura na lista dos dez mais. Não encontramos personagens estereotipadas, marcadas por uma idéia estúpida e romântica de dualismo. Nos personagens reconhecemos nossa banda podre. Não são livros morais ou imorais. Tratam do mais absurdo de todos os animais, o homem e sua viagem para lugar nenhum, tentando desesperadamente dar sentido à sua vida. O homem comum, efêmero, bem distante do Ulisses de Homero.

18 maio 2009

Paradigma

 

Outro dia li a entrevista de um escritor brasileiro, recentemente descoberto pelas editoras e pela crítica especializada. Ele dizia que não acredita nessa coisa de “ser brasileiro”.  Não sei o que pensaria José de Alencar se um vidente lhe dissesse que cem anos depois dele um escritor importante e brasileiro faria tal declaração. Depois dele e do projeto de construção da identidade cultural do Brasil – projeto que Alencar, mais do que qualquer outro romântico ambicionou com seu romance que, não obstante o claro das impropriedades tenta traçar a geografia do Brasil. Acho que a mesma reação teria o Mário de Andrade, que ao modo dos artistas de sua geração e seu caráter anárquico, também ambicionou dar continuidade – de um modo diferente, claro, crítico e coisa e tal – ao projeto de identidade cultural. Macunaíma, o herói sem caráter, é o romance tese dessa empreitada. Mas o fato é que o tal escritor da entrevista talvez não esteja enganado.

No século XIX a França era o paradigma cultural do mundo ocidental e foram as vanguardas européias que influenciaram o Modernismo dos Mários. Quase cem anos depois dos gritos e berros que ecoaram no teatro municipal de São Paulo, ainda estamos em formação e a única conclusão que chegamos é que não somos negros nem brancos nem índios.

As tecnologias nos aproximaram e a globalização – que não é coisa nova e começou com as navegações – tem contribuído para nos fazer sentir cada vez mais um só povo, não obstante os fundamentalistas de plantão. O povo do pequeno ponto perdido no espaço que alguns dizem ser azul e que se chama terra.

Teve um tempo que eu achava estranho o fato de gostar tanto dos romances americanos da década de 20, ambientados na França e que falam de homens e mulheres – de quem uma escritora se referiu como geração perdida – vivendo o entre-guerras e a frustração de ser humano e o quanto isso representa de impotência e fragilidade. Eu achava que isso acontecia em decorrência de minha péssima formação em escolas públicas e minhas leituras mal orientadas. Cheguei a escrever para um amigo, lamentando essa falha em meu caráter. Por que eu me sinto mais identificado com Fitzgerald do que Graciliano, e por que kind of blue me encanta mais do que Samarica Parteira?

Não estou dizendo que nossos escritores e músicos sejam melhores ou piores. Estou dizendo que um livro ou disco, escrito ou gravado quase cem anos atrás e milhares de quilômetros longe de meu país me encanta e me causa felicidade. E isso tudo também por uma relação narcisista. Porque de algum modo e apesar de todo estranhamento, eu, nascido em Pernambuco, Nordeste do Brasil me encontro ali. Vislumbro meu reflexo.

Não me sinto mais constrangido. Leio e escuto o que me traz felicidade, mesmo que o Ariano me considere um mentecapto. 

12 maio 2009

Teimosia


Dizer que um escritor segue a tradição não é afirmar em outras palavras que ele seja cultor de formas anacrônicas ou temas idem; não confundir com neoclassicismo. Também não é acusá-lo de plágio, tampouco fazê-lo herdeiro de uma herança segundo a contingência da legitimidade do sangue; nada a ver com a ética aristocrática, mas com a ética segundo Hesíodo; estamos falando do esforço da labuta, do direito adquirido, por que conquistado.

O texto acima é o primeiro parágrafo de um artigo que escrevi faz uns dez anos. Na época eu achava que tudo se resumia numa equação elementar: dedicação e labuta. Hoje eu sei que não é tão simples, mas ainda não desisti e consigo extrair consolo de uma frase de Flaubert: “Não importa, terei algum valor por minha teimosia.”

26 abril 2009

Max Brod

Num artigo, Harold Bloom, o crítico americano, vaticinou que o jovem leitor que começar suas leituras pelo Harry Potter não evoluirá para leituras mais sofisticadas, como os clássicos. Na ocasião em que li essa opinião, recordei-me de um jovem que conheci quando morava com os meus pais. Ele devorava os livros de Agatha Christie, e quando leu o último das oitenta e tantas novelas da autora inglesa entrou em crise, somente resolvida quando se decidiu reler os livros. Depois disso eu não acompanhei mais o caso, mas naquela ocasião ler outros livros que não fossem os de Agatha Christie não fazia o menor sentido para ele.

Também me recordo de um colega de escola que não podia passar um dia sequer sem ler o seu bom e velho faroeste de bolso, livros de qualidade literária duvidosa e pior traduzido. Este eu reencontro depois de muitos anos e não sei se porque o hábito faz o monge ou se por uma grande coincidência, encontro-o com um romance de Elmore Leonard. Ele não evoluiu para outro gênero, apenas melhorou suas escolhas de autor.

O fato é que normalmente um bom livro está associado a desafio. Desafio intelectual. Um bom livro pede nossa participação no processo criativo, e isso não é novo, a bíblia é um desses exemplos. Ler requer esforço, coisa bem diversa do que nos exige a televisão. Mas alguns não entendem isso. Esperam encontrar nos livros, as mesmas formulas fáceis da televisão. É por isso que os livros incluídos nas modas literárias e que passam semanas, às vezes meses, nas listas dos mais vendidos da Veja, são quase sempre livros de qualidade literária inferior e se constituem unicamente em entretenimento. Um objetivo indigno da literatura, diria Ernesto Sabato.

Acho que o bom livro é mais do que isso, transcende essa fronteira do meramente divertido. Mas o problema é que um livro especial pede um leitor especial. Entende-se por especial alguém capaz de um olhar diferente para a tirania da mídia no seu processo de mediocrização do público consumidor. Não alguém que simplesmente segue a onda. Falo de autocrítica e sensibilidade.

Qual é o problema, então?

Sobre a debilitada moda literária, Carlos Fuentes, no seu Geografia do Romance, citando José María Guellbenzu, diz que “a criação literária é elitista; é o acesso a ela que deve ser democrático e isso só se consegue por meio de uma educação para todos que permita erradicar a ignorância.”

Não sei quando isso foi escrito nem em que contexto. Só sei que os bons livros de literatura, aqueles que hoje são o orgulho da nação, que incorporam os maiores paradigmas das línguas que representam, tiveram no ato de sua publicação a pior recepção por parte do público. Não raro da crítica. A lista é enorme, este espaço não me permite enumerar, mas para não ficar muito vago, permito-me citar os romances de Kafka, o Ulisses de Joyce.

Herman Melville foi amado enquanto publicou historias de aventuras no mar, quando ousou ir mais longe com o seu Moby Dick e Bartleby, não vendeu mais nada e quase caiu no esquecimento. Jorge Luis Borges, uma das maiores expressões da literatura do século XX é considerado hoje um escritor lido apenas por escritores.

Osman Lins é conhecido apenas por Lisbela e o Prisioneiro, um exercício de criação literária produzido numa oficina, no começo de sua carreira. Suas obras mais importantes como Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia são considerados livros herméticos e somente lidos por escritores. Júlio Cortazar, um dos maiores escritores argentinos disse uma vez que trocaria toda sua obra por Avalovara do escritor brasileiro, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco.

Parece-me, às vezes, que os leitores da boa literatura sempre foram raros. Eles não são os membros de uma sociedade secreta prevista para daqui a 50 anos como diz Philip Roth. Eles sempre foram essa sociedade secreta. Sempre foram poucos, espalhados pelo mundo, com sensibilidade como a de Max Brod, primeiro leitor de Kafka.

A educação, aquela referida por Carlos Fuentes, responsável em produzir leitores especiais, não é, certamente, a mesma conseguida nas escolas de hoje, tampouco nas universidades onde se formam médicos, engenheiros ou advogados. Conheço muitos senhores e senhoras que ostentam orgulhosos os canudos que lhes emprestam títulos, honrarias e dinheiro no banco. E entre a grande maioria dessas bestas, não há nenhum Max Brod. A maioria absoluta nunca leu uma obra literária de verdade, e muitos se ressentem do Machado de Assis que foram forçados a ler no segundo grau, sob a ameaça de um equivocado, porém bem intencionado, professor de literatura.

13 abril 2009

Fanatismo

Há um livro delicioso que sempre leio e releio. O escritor e seus fantasmas de Ernesto Sabato é uma coletânea de pequenos textos, fragmentos de cartas, ensaios e resenhas literárias. Não há uma seqüência linear, embora quase tudo gire em torno do mesmo assunto: literatura. No livro, como sugere o título, nos deparamos com os fantasmas do escritor; suas inquietações e obsessões. Costumo ler em voz alta um trecho do livro, acho que foi o que mais me chamou a atenção em toda aquela babel de pequenos textos. Ando para lá e para cá recitando o trecho, sinto que é uma verdade que devo assimilar, por isso assumo uma atitude solene, alguma coisa parecida com os muçulmanos lendo e relendo o Alcorão a fim de que ele comece a fazer parte de sua natureza. No trecho o escritor diz que o fanatismo é a condição mais preciosa do criador, e enfatiza: é preciso ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante pode ser feito.

Hoje, lendo as Cartas de Flaubert, lembrou-me o livro de Sabato. Flaubert também fala, nas cartas, de seus fantasmas, e poucas páginas depois de leitura, percebemos que aquilo que mais preocupou e consumiu sua vida foi a literatura. Dele, podemos dizer, sacrificou tudo em nome da criação. Acho que Fernando Pessoa estava pensando nele quando escreveu seu axioma famoso. Num trecho de uma das cartas, há uma frase que sublinhei: Não se faz nada de grande sem fanatismo.


Provavelmente Ernesto Sabato leu as Cartas de Flaubert, mas talvez nem pensasse nelas no momento em que escreveu sua interpretação da condição mais preciosa do criador.

06 abril 2009

Da inércia

Não sou um entusiasta de minha própria desordem. Sou um crítico, lamento este meu caráter. Mas não é da desordem que provoca o caos, o que eu me refiro, não a desordem que pressupõe ação, movimento, revolução. Mas uma outra desordem, aquela que nasce da inércia, da preguiça. A desordem das coisas fora do lugar porque ninguém as colocou de volta na escrivaninha, na estante, no tinteiro. A desordem provocada pelo absoluto não fazer.

Há um livro de Luís Jardim que tem um péssimo nome “As confissões do meu tio Gonzaga”, mas que foi escrito na melhor tradição de Machado de Assis e do romance psicológico. No livro há uma personagem, o Gonzaga, que não consegue ser feliz porque um sentimento de profunda impotência o impede de dar curso a seus projetos mais simples. Convertido num ser sem vontade própria, vive a ditadura da inércia. Quando li o livro surpreendeu-me como Luís Jardim soube captar o espírito de sua cidade natal – Garanhuns – , uma cidade famosa pelas coisas que já teve e que apresenta em sua imobilidade crônica uma perfeita vocação para província.

A inércia também tem outro nome, chama-se Bartleby. No momento sou Bartleby com sotaque de Gonzaga.