19 julho 2009

O que veio de longe

Disse-lhe Pilatos: "O que é a verdade?"
João 18-38


É o nome do primeiro dos treze contos que compõe Livro dos Homens, de Ronaldo Correia de Brito. A cheia de um rio traz um corpo. Ninguém sabe quem é ou de onde veio, mas sua vestimenta e adornos – jaqueta de veludo, camisa fina com abotoadores de prata, anel com arabescos de ramos e flores entrelaçados – fazem com que a gente simples o tomem por homem importante, de origem nobre.

O corpo é enterrado debaixo de uma árvore que dá sombra aos vaqueiros e rebanhos. Guardam as relíquias do morto e se inquietam tentando encontrar os nós de sua história. Para o corpo sem rosto – comido pelos peixes – e sem identidade, aquela gente imagina tudo o que lhes falta. Começa a nascer o mito, favorecido por algumas circunstancias como a narrativa da mulher curada de picada de cobra e que na agonia, debaixo da sombra da oiticica, rogou ao bondoso desconhecido, ali enterrado. À narrativa da mulher, sucedem-se outras.

O mito se consolida. Viajantes ouvem as histórias, interessam-se e saem pelo mundo espalhando os relatos do santo, suas aventuras, feitos heróicos e generosos. Tudo urdido pelos exilados do Monte Alverne que agora estão convencidos de que devem aguardar o chamado do morto.

Então surge o desmistificador.

Pedro Miranda ouve o relato quando passava por ali. É uma noite sem lua e o visitante não se intimida, reconhece que o santo na verdade é um assassino covarde, o Domísio Justo, a quem ele deu três tiros, vingando a morte de sua irmã. Alguém o adverte do perigo de suas palavras, há uma mulher desafiadora. Deixem-no falar. Ele conta tudo, é essa a verdade. O que é a verdade, pergunta alguém escondido no escuro.

A partir daí os ânimos se acalmam e todos são convidados a dormir e descansar. Durante a noite, aqueles que se julgam discípulos do santo vão se reunir e tramar. É preciso defender a “verdade” com métodos mesmo contrários aos princípios. Um dever maior os convida ao sacrifício, mesmo que com aquele ato – o do assassinato – estejam condenando suas almas. Os mentirosos agora acreditam na própria mentira e estão dispostos a tudo para defendê-la.

Não é uma história folclórica que conserva os registros da vida de uma gente e sua região, mas a história do homem no capítulo religião. Nota-se que o título do livro está justificado. Ronaldo também é dono de uma escrita elegante e precisa. Um texto na melhor tradição de Flaubert, do escritor incansável em procurar a palavra exata.

2 comentários:

Joaquim Rafael disse...

Gostei muito do estilo. Como a gente acha esse livro? (para comprar, roubar ou tomar emprestado)

Mário disse...

Este conto, juntamento com Faca (o conto, não o livro), teve seus direitos adquiridos pela Rede Globo; poderá virar, em breve, uma minissérie.
É pena que o autor deste blog - que a julgar pela ausência de postagem deve ter falecido - não está mais aqui pra ver....

Deixa de preguiça, Nivaldo.

Valeu, Mário.