20 março 2013

Uma estadia em Recife


Fellipe, o jornalista do Diário de Pernambuco não foi o único que ficou surpreso quando soube que eu, autor de livro de contos e um dos editores de um jornal de literatura, era do Corpo de Bombeiros. Literatura, pelo menos para o escritor obscuro, autor de obra independente e que vive num mundo estranho ao eixo rio-são paulo, não é capaz de prover as necessidades financeiras de ninguém, espera-se que o escritor também seja jornalista, professor ou outra profissão afim das letras. Antes de Fellipe foi a vez de João Marques. Um dia ele me disse: Nivaldo, esse negócio de ser militar não tem nada a ver com literatura, deixa o Corpo de Bombeiros e te dedica à educação, vai ser professor, rapaz. O que eu respondi a João naquela ocasião; repeti agora para o Fellipe. Disse-lhes que o CB é um aliado importante porque me paga um salário e de quebra me concede tempo livre que eu aproveito lendo e escrevendo.

Além de me disponibilizar tempo pra ler e escrever, o CB é capaz de outros prodígios como foi em 2005 quando fui transferido, contra minha vontade, da Seção de Bombeiros de Garanhuns para a Diretoria Administrativa no CCB, em Recife. Naquela ocasião as circunstâncias me oportunizaram frequentar a oficina de Raimundo Carrero uma vez por semana durante um ano e conhecer, numa leitura de contos, na livraria cultura, o escritor Ronaldo Correia de Brito. Tal encontro, com Ronaldo e com a Oficina de Carrero (eu já conhecia o autor de Sombra Severa fazia alguns anos) foi muito importante. Até aquele momento eu ainda não havia rompido as fronteiras que me separavam do resto do mundo, nem virtualmente, uma vez que a internet continuava pra mim um terreno inexplorado. Vivia em Garanhuns, na minha província, e meus voos não iam além dos livros. Os contos eram consumidos por alguns bons amigos que por educação ou porque nossa proximidade lhes embotava o censo crítico, não se arriscavam em críticas mais severas.

Na oficina, além da exposição de novas técnicas e verdadeiras autópsias que procedíamos sob a batuta de Carrero em clássicos como Madame Bovary ou Doutor Fausto, também se faziam leituras de contos dos alunos. Nem todos se aventuravam, mas eu estava ali passando umas chuvas, a qualquer momento poderia voltar pra Garanhuns, por isso não poderia me dar ao luxo de pudores e mesmo temendo parecer impertinente me expunha sempre que possível ávido pela impressão que poderia causar no mestre e carente de suas observações. É bem verdade que nem sempre me conformava com as observações de Carrero, às vezes elas me pareciam o resultado de puro cansaço do professor diante dos alunos ineptos. Numa dessas ocasiões ele achou de cismar com uma palavra aparentemente sem importância que apontou num parágrafo. Eu jamais usaria esse verbo, disse num tom quase arrogante. O famigerado verbo se tratava de tinha, pretérito imperfeito. Para Carrero tinha soava como doença ou coceira. Isso aqui não é o Parnasianismo, eu lhe disse, tinha é tão palavra quanto qualquer outra. A discussão se alongou e envolveu outros alunos. Carrero é um amor de pessoa, é o cara mais gentil que eu conheço. Suas observações eram sempre apresentadas com muita delicadeza. As duas horas passaram rápido e eu voltei para meu alojamento no colégio da polícia militar (nesses dois anos que passei em Recife, também ministrei aula de literatura para quatro turmas de terceiro ano naquele colégio) no alojamento me sentei na cama com o conto na mão, reli o parágrafo e substitui a palavra execrada pelo mestre. O resultado me pareceu melhor. Afinal Carrero tinha razão.

Até aquele momento, embora Ronaldo já fosse o festejado autor de Faca e Livro dos Homens, eu ainda não o conhecia. Fui encontrá-lo na livraria cultura, onde dividia o auditório com Luzilá Gonçalves. Gostei de Ronaldo naquela hora. Ele me pareceu o escritor idealizado por mim, tão apaixonado e envolvido com o que fazia ao ponto disso estar refletido na sua compleição física, por isso seus modos de homem culto, herdeiro da memória dos livros e consciente da dor e do efêmero, revelava sua verdadeira natureza de artista, do tipo capaz de tal sofisticação que soava fatal, quase trágica como a de Adrian Leverkun.

Eu pedi que Cristhiano Aguiar nos apresentasse, Ronaldo se mostrou receptivo, acho que ele percebeu que estava diante de um futuro leitor, aquele para quem a gente escreve na esperança de um diálogo. Se foi isso o que pensou, acertou em cheio. Se ele ganhou um leitor, eu ganhei um professor. Eu já tinha Carrero. A oportunidade de ter dois professores de peso me foi dada em troca de minha transferência de quartel. O pacato e tranqüilo de Garanhuns pela torre de babel do Recife. Eu ainda não disse, mas a transferência não fazia sentido, Recife já tinha sargentos de mais, as seções estavam ocupadas por eles, sargento batendo em sargento. O que eu fazia ali, tão distante de Garanhuns? Ninguém sabia me responder, alguns oficiais concordavam que minha transferência era despropositada, provavelmente um equívoco, por isso compraram a briga, mas seus esforços resultaram inúteis, ninguém sabia de onde partira a ideia da transferência, é certo que fora publicada no Boletim Geral, de fato a Seção de Pessoal da D.A. precisava de um primeiro sargento, mas por que eu?, tudo ia de mal a pior. Entre a publicação da nota de transferência e minha apresentação houve mudança de comando, eu precisava esperar; outra transferência agora só mediante permuta. Nesse meio tempo eu me vi responsável pelo setor de pessoal da D.A., aquilo estava um caos. O tempo foi se passando, todos os dias eu falava com um capitão ou major diferente, ninguém dava jeito, eu sofria por causa da burocracia.

Então a burocracia me venceu. Um dia eu deixei de procurar, também não sabia se ainda estava interessado em voltar pra Garanhuns, eu estava gostando da Oficina, sentia que ela surtia efeito. As observações de Carrero foram capazes de me dar um novo olhar sobre meus escritos, somado a isso havia o diálogo com Ronaldo. Dei de ombros e me deixei levar pela correnteza.

A vida de Ronaldo não é fácil, precisava se dividir entre a medicina, a família e sua produção literária, apesar disso, ele abriu um espaço na sua agenda e aceitou ler meus contos e se encontrar comigo para comentar sua impressão. Nem sempre Ronaldo era delicado como Carrero, mas eu gostava de sua sinceridade que às vezes me parecia transformada em sadismo. Suas observações eram duras, ele não alisava, refazia parágrafos inteiros, me chamava a atenção para a inutilidade de uma frase, questionava a verossimilhança de um perfil de personagem e dizia que eu precisava sujar o texto. Ousar mais. Na melhor das hipóteses ele dizia que o conto não estava ruim, mas faltava alguma coisa. Às vezes eu saía de um desses encontros desolado, pensando seriamente em desistir da literatura. Mas todo aquele esforço de Ronaldo para que eu perdesse minha literatura escondia um intuito secreto: Eu precisava perdê-la para achá-la.

Durante aqueles dois anos, tive o privilégio de me encontrar com Ronaldo Correia de Brito e Raimundo Carrero, dois importantes escritores que para sorte minha foram com a minha cara, e me levaram a sério como escritor, sou grato a eles e também ao Corpo de Bombeiros e sua burocracia kafkiana que possibilitou tal encontro. 

4 comentários:

Anônimo disse...

Talvez o responsável por sua transferência era seu leitor e "tinha" vontade de ler uma produção sua mais apurada. Nivaldo, tu "tinha" mesmo era que ir. Hoje, quem leu em 2001 A grande torre, agradece a transferência seja lá quem for o autor dela e tem uns Dias de febre na cabeça, aquecidos pela técnica do conto.

Adelmo

Anônimo disse...

Ainda bem que Carrero e Ronaldo foram gentis com você, Nivaldo. Já pensou se você ouvisse editor ler a matéria de um repórter e mandá-lo reescrever tudo sob o pretexto de que "para ficar uma merda precisa melhorar muito"? Você está se firmando como escritor por três razões: 1) É persistente.2) Tem talento. 3) E confirma a afirmação de Graciliano Ramos: "O que tem de ser tem muita força". Parabéns e boa sorte.

Nivaldo Tenório disse...

Obrigado Nelson e Adelmo, vocês são muito gentis.

Sara disse...

suas histórias são muito emocionantes. Eu estou escrevendo um livro e viajar por todo o mundo em busca de inspiração. amanhã eu vou Argentina e encontrei um Aluguel buenos aires muito bom.