04 julho 2010

José Saramago

Foram diferentes minhas reações diante de duas notícias acerca de José Saramago. A primeira quando o escritor ganhou o Nobel e a segunda quando o homem foi surpreendido – porque sempre somos surpreendidos, jovens ou velhos, saudáveis ou doentes – pela morte.

Foi em 1998, eu já conhecia o escritor fazia uns dois anos. Nesse período li pelo menos três livros dele: Levantado do chão, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Memorial do Convento. Recebi a notícia e desejei comemorar, mas naquele tempo – nem faz tanto tempo assim – não havia mais ninguém, dos meus conhecidos, que conhecesse Saramago, alguns já haviam ouvido falar, mas não tinham lido nada. Meu entusiasmo esbarrava sempre numa quase indiferença do outro. Mas eu estava animado, era um escritor que eu gostava e escrevia seus livros na minha língua.

Sexta feira, dia 18, entretanto, recebi a notícia da morte dele sem nenhuma reação. Eu queria sofrer, mas não sofria. Não tinha jeito, e durante o resto do dia e no dia seguinte também. De vez em quando me acontecia de encontrar pessoas– isso sem mencionar as ligações para meu celular – que me perguntavam sobre a morte, se eu já sabia... Eu sentia vontade de responder – talvez tenha respondido para alguns – que não sabia, e de novo tentava sofrer em vão. Nada de sofrimento. Nenhuma lágrima.

José Saramago se fez escritor – é pelo menos essa a idéia que faço dele – para ser útil. Parece uma contradição. Numa certa medida não deixa de ser, principalmente quando voltamos nossa atenção para o esteta. Não é por acaso que tenha publicado tão tarde, nele havia uma preocupação com o como escrever. É claro que para ele havia muito a dizer, berrar, gritar e denunciar as injustiças do mundo, o sofrimento do homem explorado pelo homem e a miséria do fanatismo, mas não é panfleto o que o escritor deseja produzir, não é um mero discurso, é arte, é literatura e aí reside a questão. De fato. Poucos escritores conseguiram a proeza de escrever uma obra engajada, pragmática, um romance, conto ou poema que fosse também, além do que sua natureza exigisse, um veículo de propagação de uma idéia. Essa subordinação da arte é perigosa e José Saramago sabia disso. Além do mais, as idéias ou verdades – mesmo as verdades ou aquilo que entendemos como tal – correm o risco de envelhecer.

Foram dois livros, lidos um depois do outro, que me apresentaram o universo romanesco de Saramago. Depois, claro, vieram outros que li com o mesmo deleite, alguns mais do que outros como O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas os dois livros, apresentados nesta ordem, me chamaram a atenção para dois aspectos fundamentais: o escritor e sua preocupação com o tratamento dado à linguagem e o escritor e aquilo que desejava comunicar ao mundo.

Em Levantado do chão, a história da família mau-tempo, lavradores do Alentejo, desde tempos muito remotos até a Revolução de 1974, eu me encantei com a oralidade inventada de José Saramago. Era o tipo de texto que nos prende porque exige toda a nossa capacidade de leitor, do outro que também é autor, numa certa medida, e participa efetivamente do processo de criação. Depois foi a vez do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também a prosa – aquela oralidade – e agora a história, uma de minhas preferidas. Mas não como é apresentada no livro sagrado que não suporta refutação, mas a história recontada – como antes já fora por Kazantzákis – do Crucificado que incorpora os elementos do humano e se faz humano. Nesse livro, profanar o sagrado não é desrespeitar, mas inquirir até onde nos bastam as verdades, até onde vai o mito e nos arrasta juntos e se ainda nos serve de modelo. José Saramago foi nosso Voltaire contemporâneo, talvez menos galhofeiro, mais sisudo, e quase sempre melancólico porque pessimista. Não o tipo de pessimismo que não acredita em nada, negativo, mas aquele que desconfia da normalidade, que conserva sua capacidade de se indignar.

Não gosto da morte. Aliás, na minha família, é uma tradição ninguém gostar da morte. Meu avô sofria de melancolia sempre que alguém o lembrava da morte. Ele já morreu, deixou de sofrer. Papai ainda sofre, e eu espero que continue sofrendo durante muitos anos. Eu idem. Mas não tem jeito, um dia, mais cedo ou mais cedo – porque é sempre cedo – eu e todo mundo vai se encontrar com a indesejada das gentes. Fazer o quê? Saramago parece que não gostava também. Para nós que nos pusemos em contato com o eterno – a literatura é uma das responsáveis por isso – fica difícil engolir a morte. Diante dela só a revolta. Mas não há o que fazer, além de se revoltar. No caso de Saramago, pelo menos, a morte adiou sua vinda e deixou que o homem completasse alguns de seus projetos – quase todos livros. É verdade que faltaram outros, sempre falta, mas acho que ele morreu consciente de que fez o melhor que podia fazer. E sua dignidade para com o fim sem nunca se sujeitar às idéias consoladoras da religião é a impressão mais forte que guardo dele e, talvez por isso, não sofri, o homem voltou ao nada, sua obra, entretanto, continuará conosco ainda por algum tempo.

4 comentários:

Helder Herik disse...

Se o Vaticano fosse sério, canonizava o Saramago.

Joaquim Rafael disse...

Fui cativado por Saramago logo em Jangada de Pedra, que idéia, que revolta contida na discriminação de um continente que faz a península Ibérica despregar nos Pirineus e sair sem rumo, mar a fora. Depois vieram todos os que você citou e mais: A História do Cerco de Lisboa, um livro que caçoa do sentido de tempo e da história; uma peça, – Em Nome de Deus – sobre um(também) cerco medieval a uma cidade da Germânia com motivações religiosas. Fará falta Saramago, mas entendo a tua “falta” de tristeza que do mesmo modo sinto. É só ler As Intermitências da Morte e sentir os efeitos de uma greve da ceifadora sinistra. O livro é um solo de oboé uma melodia em dueto com a inevitável e necessária, a que levou o escritor, em suma, apenas para não prevaricar no cumprimento da sua obrigação.

Ivaldo Tenório disse...

Lembro-me bem daquele 1998, da sua alegria em comemorar o primeiro Nobel em Língua Portuguesa. Comemoramos juntos, embora minha primeira leitura só se deu com "O evangelho segundo Jesus Cristo", algum tempo depois, outro livro que combina bem literatura com engajamento.

Negro Sangue disse...

Nivaldo, ainda não tive contato com a escritura de Saramago, que livro você indicaria para esse primeiro contato?

Erick Camilo