31 agosto 2009

novos valores

Parece que duas coisas em Felice foram responsáveis em causar profunda impressão em Kafka. Uma delas de ordem prática. Felice era capaz de fazer tudo numa velocidade inconcebível para Kafka. Coisas como mudar de roupa, por exemplo. A outra, numa ordem também prática, porém com implicações no espírito, era o hábito de ler até as quatro horas da manhã. Se uma tinha o poder de inquietá-lo porque o fazia sentir-se diferente já que não se imaginava capaz de tal prodígio – Kafka, segundo Elias Canetti, fazia tudo partindo de um processo extraordinariamente lento – a outra causava inquietação a medida que lhe revelava uma completa identificação. Ao longo de cinco anos os dois desenvolveram uma correspondência que quando publicada, 43 anos depois da morte de Kafka, rendeu um volume de 750 páginas.

As cartas – que também são a gênese de O Processo, o romance – inspiraram um interessante ensaio de Elias Canetti. Mas não é dele que desejo falar, se o mencionei foi para citar o volume da correspondência. Parece-me que nos dias atuais tal troca de cartas, motivada pelo amor e literatura é talvez incompatível com o estilo de vida que levamos. Não falo só da correria, mas de novos valores que ao longo das décadas incorporamos e que ditam nosso comportamento. A mídia visual e os desdobramentos do Capitalismo talvez sejam os maiores responsáveis. A televisão está quase sempre associada a alienação e emburrecimento – lembram da música do Titãs? – e as novas tecnologias compradas pelo dinheiro instam no homem a necessidade pelo conforto e abrem um leque de possibilidades no campo do entretenimento. O resultado disso é um gosto pelo mediano e uma paixão pelo imediatismo. A maioria dos jovens que conheço vive como se fosse morrer no final da semana. E não estou falando em Epicurismo. Nada a ver com aproveitar ao máximo a experiência que nos proporciona o dia. Parece que nesse novo mundo a obra literária passa por esquisitice do passado. Imagino uma primeira edição de um livro de contos, foi o último publicado depois que os ebooks dominaram o mercado até serem substituídos por jogos sofisticadíssimos de vídeo game. O livro está exposto numa galeria de museu. Há um grupo de pessoas curiosas e todos concordam quando alguém manifesta sua perplexidade: Como é que as pessoas antigamente encontravam tanta paciência?

Não há mais correspondência. Sobre o que precisamos conversar? Meu vizinho é meu inimigo. O serviço dos correios é muito útil para fazer chegar a nossas casas as compras dos cartões de crédito. Muitos vaticinam o fim das lojas como as conhecemos. Parece que é próximo o dia que não precisaremos mais sair de casa. Afinal é grande a violência lá fora. Já fazemos isso para nos relacionar. Nesse universo, portanto, ler um poema parece algo fora de propósito, uma perda de tempo. Então não lemos. Os mais responsáveis se orgulham de seu pragmatismo e não perdem tempo com nada que não possa ser trocado em dinheiro. Oscar Wilde não causaria frisson nenhum se dissesse hoje que toda arte (literária) é completamente inútil.

Um comentário:

Adelmo disse...

Neste texto parece até que vc saiu do porão para anunciar que os processos evolutivos estão nos levando a padronizar tal modelo de vida. Mas ao contrario de vc e de outros as pessoas ficarão no porão não para ler ou coisa mais proveitosa, sim, para vivenciar um consumismo privado.

Gostei muito do texto levanta questões q as vezes pensava eu ser o unico a ter surto de loucura e fazer disto algo "inutil".