31 janeiro 2012

Sofrimento, Teodicéia e malogro

Como acreditar numa verdade que não resiste ao tempo? Ainda mais uma verdade com pretensão universal? Mas o fato é que não resiste e à medida que o resultado do trabalho de pensadores e cientistas se impõe e aparece um novo espírito de época vai ocorrendo por parte dos conservadores uma tentativa desesperada de acomodar as coisas. E vão aparecendo as justificativas (a teodicéia é uma delas) surgem argumentos do tipo: “é preciso contextualizar” e alguns jargões são logo construídos e repetidos de boca em boca de padres e pastores evangélicos.

Uma questão interessante a esse respeito é a idéia de sofrimento e como ela foi tratada pelos autores da bíblia.

Os profetas como Amós, Jeremias ou Isaias tentaram justificar o sofrimento pelo qual passava seu povo, o povo escolhido, falando de desobediência – e é interessante notar que é desobediência e não pecado, algo sobre o que tratarei mais adiante. Sofria o povo porque insistia em desobedecer e por isso recaia sobre ele a fúria de deus. Deus é bom e tudo pode, mas mesmo sua paciência tem limite.

Com o Pentateuco ou Torá, composto pelos primeiros cinco livros, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, ficamos sabendo da origem do mundo e da vida e depois acompanhamos o povo escolhido de deus, os judeus, a aliança, ida para o Egito acossado pela fome, uma relativa prosperidade naquela terra estrangeira e sua escravização pelo faraó duas gerações depois de Abraão. Depois disso é preciso que um líder apareça para libertar o povo e é o que faz Moisés depois de ser arauto das pragas de Javé contra os egípcios. Ele conduz mar vermelho adentro seu povo para o grande malogro que é a terra prometida.

Uma coisa curiosa e que passa despercebida é que a tal terra prometida (Canaã) já era habitada por povos ferozes e que para obter a posse da terra se fazia necessário lutar. Deus não estava familiarizado com a burocracia dos cartórios. Não conhecia os tramites legais, é por isso que os portugueses que são sábios e aprendem com a experiência alheia, logo que atracaram no paraíso abaixo da linha do equador lavraram a escritura e garantiram a posse legal das novas terras descobertas (os índios, como deus, também não manjavam esse negócio de cartório).

Era preciso lutar e o povo reluta, coisa que não é bem recebida por Javé. Não interessava que o povo estivesse extenuado, afinal fora liberto fazia pouco do trabalho escravo, é de se supor, portanto, que não esbanjasse saúde, mas Javé não se interessa por detalhes, seu povo desobedecia fazendo corpo mole e isso não era coisa que ele pudesse tolerar. Não Javé. E o que acontece em seguida todo mundo sabe e faz vista grossa; o povo amargou 40 anos no deserto, andando para lugar nenhum até que toda aquela geração de homens podres do trabalho egípcio morresse.

Como se vê, nunca foi fácil ser judeu, a tal terra prometida quase nunca lhes pertenceu de verdade, Israel (a Palestina para ser mais exato) por séculos foi sempre uma terra ocupada por estrangeiros; centenas de gerações de judeus viveram e morreram sob o jugo de outros povos: Assírios, babilônios, persas, gregos e romanos, entre outros, durante muito tempo foram os verdadeiros donos da terra prometida por deus.

Numa época muito anterior ao holocausto, certamente os judeus já se perguntavam por que, sendo eles o povo escolhido e apadrinhado por deus, sofriam tantos reveses. A resposta estava na ponta da língua dos profetas: sofria porque merecia já que é tão teimoso em desobedecer. Tudo bem, o argumento parece que convencia – a pelo menos uma boa parcela deles – mas aconteceu algo que os profetas não previram. Quando Antíoco IV assumiu o trono em 175 a.C. ( 1 Macabeus) e perseguiu os judeus forçando-os a abandonar suas crenças, proibindo o culto a Javé e sentenciando à morte os pais que fizessem circuncidar seus filhos entre outras coisas, a explicação dos profetas já não convencia nem os mais abnegados religiosos. Antes o povo sofria porque desobedecia a Lei de Javé e agora estava sofrendo justamente porque obedecia ou queria obedecer. E então? Como explicar o sofrimento?

Fácil. Uma nova estratégia foi montada e passaram a surgir os autores apocalípticos. Daniel foi o primeiro. Sobre essa questão eu recomendo ao leitor interessado por mais informação o muito bom O Problema com Deus, de Bart D. Ehrman, ex-pastor batista que recobrou a razão quando perdeu a fé.

A partir de agora é preciso criar novos conceitos e o mais importante deles é a Dualidade. Ehrman ainda cita Pessimismo (o mundo é governado pelo mal – com a aquiescência de deus – e nada que possamos fazer pode mudar isso); Castigo (foi deus quem criou este mundo e é ele quem vai redimi-lo castigando com o inferno aqueles que merecem) e Iminência (em breve deus retornará, o diabo vai se recolher à sua insignificância e os bons e justos viverão sob os auspícios de deus todo poderoso que vai governar como um rei).

É interessante notar que nos primeiros livros da bíblia como o Pentateuco, por exemplo, não existe a figura de satanás como nós o conhecemos hoje. A serpente que tenta Eva não passa de uma serpente com a diferença que se expressava na mesma língua da primeira mulher e possuía a incrível habilidade de andar sobre duas pernas. Quando sofre a punição de Javé, perde as pernas e passa a rastejar sobre o próprio ventre. Não é ao demônio a quem deus se dirige, mas à serpente. Ainda não existe o conceito universal de dualidade que trouxe com ele a idéia de pecado. O universo não é dividido entre duas forças que se opõem; de um lado deus pesando muitos quilos que representa o bem e do outro o famigerado e magricela satanás representando o mal.

Isso é tão certo que num dos livros poéticos e sapienciais, Jó, satanás aparece como um conselheiro de deus, um de seus filhos que tem livre acesso ao céu onde é recebido com honra e ocupa uma determinada função.

E agora cito o interessante questionamento de Epicuro:

"Deus está disposto a evitar o mal, mas não é capaz? Então ele é impotente.
Ele é capaz, mas não está disposto? Então ele é malévolo.
Ele é igualmente capaz e disposto? Por que, então, há mal no mundo?"

Entendendo o mal como causa do sofrimento, percebemos que teve deus dois advogados, ou tipos de advogados para sua defesa. Primeiro os profetas que entendiam o sofrimento como forma escolhida por deus de castigar a desobediência à sua Lei. Quando essa justificativa ou “verdade” se esgotou, outros profetas com novos conceitos apareceram para justificar a impotência de deus e garantir a fé dos fieis. O Apocalipse é aquela que se mantém até hoje. Há sofrimento porque outra força se opera na terra e esta força se opõe a deus, no meio está o homem e o livre arbítrio. Por causa do livre arbítrio deus não pode fazer nada enquanto se endurece ainda mais as forças do mal. Mas um dia (e todos os profetas do apocalipse são unânimes em dizer que em breve, desde Daniel a Paulo passando por Jesus e o Batista) o reino de deus será estabelecido entre os homens, os maus serão punidos e os justos recompensados.

Não há nenhuma dúvida de que os profetas da bíblia falavam para seus contemporâneos quando previam o Apocalipse e mesmo Jesus deixa isso muito claro em Marcos 9,1 “em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o reino de deus, chegando com poder.”

Diante disso só nos resta duas alternativas quanto ao sofrimento, ou esperamos sentados o apocalipse ou pusemos mãos à obra e tentamos fazer alguma coisa para tornar o mundo melhor.