22 novembro 2011

Narciso, todo poderoso

Entre os religiosos do islã, não há uma separação entre o Deus prescrito no livro sagrado – Corão – e aquele que de fato povoa o imaginário dos fieis. Entre os cristãos o Deus que povoa o imaginário dos crentes se distancia daquele previsto na bíblia todas as vezes que o espírito da época exige. Isso ocorre, provavelmente, porque o cristianismo sofreu reformas e aproximações históricas que o islã não permitiu. É por isso que se diz que as bases de uma religião estão na manutenção da tradição.

De fato, hoje em dia, a Igreja Católica considera boa parte das escrituras como alegorias, portadoras de verdades teológicas (se é que isso quer dizer alguma coisa), mas que não possuem necessariamente verdade histórica. É claro que nem todo mundo está de acordo, principalmente entre os sectários fundamentalistas de certas seitas evangélicas. Mas o fato é que muito do que a bíblia preconiza, quer seja histórico quer seja verdade moral, não pode ser entendido literalmente, senão a gente vai sair por aí matando homossexuais ou os filhos que nos desobedecerem.

Para a sobrevivência da religião anacrônica – como são todos os monoteísmos – se faz necessário todo tipo de contorcionismo. Nietzsche chamava a isso de improbidade intelectual. Muitos acham que ela precisa acompanhar os novos tempos, coisa muito estranha, se imaginarmos que ela é a palavra de Deus, e como tal imutável. Mas o fato é que muitos ainda, apesar de todos os avanços e descobertas, seja no campo da paleontologia, seja na física, não deseja abrir mão da idéia consoladora de um pai. Sobre isso nada posso acrescentar que já não esteja esmiuçado em O Futuro de uma ilusão, de Freud.

Então acontece uma coisa; de repente não concordamos mais com o livro e passamos a considerá-lo ultrapassado. Mas isso acontece num nível do inconsciente, ainda é a Palavra, mas a Palavra que precisa ser decifrada, que guarda um grande segredo. Então as pessoas se recusam a ler com medo de ter de se deparar com tais verdades porque no fundo parecem vulgares e despropositadas. É preferível não ler, então as pessoas – aquelas que não querem abdicar da idéia de que há um pai – passam a nutrir muito receio do Livro, conservando-o na estante. É por isso que algumas pessoas pagam verdadeiras fortunas em bíblias enormes, quase impossíveis de manusear, com lombada dourada e contendo todas as ilustrações de Doré. É para não ter que ler, afinal fica muito pesada. Impossível de manusear. Lá dentro, consigo mesmo, o sujeito quebra a cabeça: Não é possível que alguém quer que eu leve à sério isso?

Vou dar um exemplo, aquilo que Deus diz à mulher, depois que os dois comem da fruta do bem e do mal. Já leram? Pois então vamos lá para o Livro de Gênesis 3,16: “com dor terás filho e tua vontade será para sempre a do teu marido e ele te dominará.”

Qual é a mulher, no mundo ocidental e em nossos dias, que está disposta a encarar esse absurdo como uma verdade inquestionável? Qual é a mulher, depois de toda a luta que travaram no fatídico século XX – que ainda travam nesse começo de século – que não se sente ofendida diante de tais palavras, tal castigo, tal maldição?

Na última festa literária de Olinda encontrei a Maria Paula, aquela do Casseta e Planeta, numa das mesas alternativas do evento. Ela e mais duas mulheres desenvolviam um trabalho com o público que tinha como tema o papel da mulher na história ou qualquer coisa do gênero. A intenção era fazer justiça à mulher que sempre sofreu descriminação e a quem foi dado um lugar de subordinação. Então a partir de islaides e comentários quase sempre bem humorados elas passaram a descrever como as mulheres atuaram nos diversos momentos históricos. Na Idade Média elas não deixaram de culpar a Igreja e seus clérigos por terem sido demonizadas.

Quando a conversa acabou eu levantei a mão e fiz uma pergunta: Por que a mulher, perguntei, apesar de ter sofrido e ainda sofrer tirania por parte da religião, continua sendo sua maior defensora?

Maria olhou para as amigas e saiu-se com uma resposta que é o mais puro reflexo desse contorcionismo de que falei. Ela disse que a mulher tem predisposição à fé, algo que faz parte da sua natureza, daí porque sua defesa da religião. É claro que essa resposta tem mais de romantismo ou idealismo do que argumentação e propriedade, ela não considerou o fato do condicionamento sofrido pela mulher, algo indelével que decerto deixou marcas profundas. Mas não foi essa resposta aquilo que me chamou a atenção na sua fala, mas o que ela disse um pouco antes, referindo-se à bíblia; disse que era um livro escrito por homens, cheio de idéias masculinas e, portanto sem importância para os dias de hoje. Chamou o livro de anacrônico e descontextualizado.

E aí eu volto para o que disse no início; as pessoas estão fazendo uma separação ou distinção, Maria Paula não disse nenhuma novidade; uma coisa é a bíblia e o Deus ali prescrito, outra coisa é o Deus que cada um imagina e idealiza de acordo com seus interesses. É a confirmação do axioma: Deus é feito à imagem e semelhança do homem. Mas agora deixa de ser aplicado à coletividade. Não mais a um grupo social e cultural que compartilham a mesma idéia de divindade. Deus fragmentou-se e está subordinado ao reflexo do indivíduo. Narciso elevado à mais alta hierarquia.

Sem dúvida alguma coisa se quebrou.

26 outubro 2011

amor sem fim

Amor sem Fim, último romance do muito talentoso McEwan é um Thriller psicológico baseado na obsessão de um louco que se coloca na vida de Joe Rose, um escritor de divulgação científica, e começa a persegui-lo, motivado por uma idéia fixa: o amor.

A fixação de Jed por Joe provoca a desarrumação na vida deste e um sentimento de sufocação e desconforto acabarão por prejudicar suas relações com a esposa. Clarissa não desconfia que o marido pudesse cometer adultério, na verdade ela não leva a sério as queixas dele quando diz estar sendo perseguido por um homossexual evangélico que se diz apaixonado por ele. Ela simplesmente não leva a sério, e atribui a outros fatores os receios de Joe. Mais tarde, com a insistência dele e mudança de humor ela vai nutrir uma suspeita também compartilhada pelo inspetor de polícia que toda aquela história não passa de invenção de Joe por causa do estresse, da frustração em não ter seguido a carreira acadêmica ou porque entrara num processo de loucura.

McEwan baseia-se num caso clínico estudado por De Clerambault. Uma francesa de 53 anos estava certa de que era amada pelo Rei Jorge V e por isso passou a persegui-lo fazendo diversas viagens à Inglaterra e se postando diante do palácio de Buckingham. É o achado de que o autor precisava para estruturar sua história. Nela Jed insiste que Joe o ama e como o amor é correspondido eles precisam ficar juntos. Mas não acho que ele quisesse apenas escrever mais um capítulo sobre a síndrome de De Clérambault. Vi no livro outra intenção que decerto causará despeito no religioso fundamentalista nem um pouco satisfeito com o fato de encontrar seu reflexo na figura esquizofrênica de Jed.

De uma boa obra literária pode-se fazer várias leituras, quantas leituras não há de Hamlet ou Dom Quixote?, ninguém portanto pode me acusar de nada quando faço a minha leitura de McEwan. Embora algo me diz que não estou tão longe do que quisera dizer o autor com o seu Amor sem fim. Algumas pistas me deixam seguro disso, por exemplo, McEvan é ateu, seu entusiasmo demonstrado por “Deus um delírio”, de Dawkins certamente não é compartilhado por nenhum fundamentalista, entre outros adjetivos ele se refere ao livro como lúcido, magnífico e sagaz. O personagem do livro, um escritor de livros e artigos científicos, um entusiasta da ciência com predileção justamente na área da evolução tem muito do autor com quem compartilha algumas opiniões, principalmente aquelas relativas a ciência e religião. Outro fato relevante é que não há histórico de doentes da síndrome que o sentimento religioso apareça como motivador, sendo o único (fictício) o caso de Jed.

Jed é um cristão fanático, mas não está associado a nenhuma religião em particular, McEvan é cuidadoso e certamente procura evitar a sanha de alguma seita cristã, detendo-se no fato de que Jed é cristão e vê a Deus de um modo pessoal. O deus de Jed é o cristo, aquele que fora pregado na cruz e ressuscitou, mas ao mesmo tempo é o cristo inventado por ele, seu deus pessoal. A verdade de Jed não é a verdade de Joe, mas Jed não está interessado nisso porque a única verdade – aquela que salva – é a verdade representada pelo cristo de Jed que precisa ser compartilhada. O outro não tem opção, deve aceitar aquela verdade como única e indiscutível sob pena de sofrer as conseqüências. A insistência dele em dizer que a vida de Joe esta errada – numa clara referência à Clarissa – que Joe não é feliz, não é a insistência de um louco – não nos termos patológicos em que Jed se enquadra – são na verdade as palavras de um religioso (é só ligar a televisão na madrugada, entre os muitos anunciantes e seus produtos vendidos estão os padres e pastores evangélicos vendendo o patético cristo pregado na cruz) o que Jed diz é o mesmo o que diz tais clérigos; que não podemos ser felizes sem Jesus, que a sua vida, a de Joe, não pode ter sentido sem Jesus, porque uma pessoa sem Jesus experimenta um grande vazio existencial.

É engraçada a indignação que Jed experimenta quando lê os artigos escritos por Joe e nota que ali o escritor compara Jesus com personagens literários. Fica indignado, e é a mesma indignação que muitos religiosos demonstram quando lêem em textos de blogs, por exemplo, comentários onde Jesus aparece comparado com personagem de literatura. Comparar Jesus com James Bond, diz Jed, ou com Sherlocky, faça-me mil favores.

Quem se declara ateu ou agnóstico – uma péssima idéia mesmo nos dias de hoje – sempre recebe do religioso a mesma acusação: arrogante. Então é arrogância dizer que Deus não existe e admitir a idéia de que somos finitos e que um dia vamos morrer. Mas os religiosos não são arrogantes quando dizem que são filhos de Deus – o todo poderoso criador do céu e da terra – também não é arrogância se achar parecido com Deus (imagem e semelhança) que nos fez para um propósito divino – somos protagonistas no universo – por isso subjugamos a morte – quem é o Railander do pedaço? – e não bastasse tanta megalomania ainda vamos no sentar no trono à direita de Deus Pai, Todo Poderoso – pense num trono grande – porque pagamos o dízimo e observamos o decálogo, principalmente o último de grande sabedoria e valor moral: “Não cobiçarás a casa do teu próximo nem sua mulher, nem seu escravo, sua escrava, seu boi, seu jumento etc...”. É preciso, portanto, aprender a ser humilde para nos acostumar com a vida futura, sem nenhuma preocupação ou necessidade, sem nenhum padecer e dispondo de toda sabedoria partilhada nos mínimos detalhes com o Arquiteto do Universo.
Quando Jed lê os artigos de Joe não deixará de atirar em sua cara a acusação de arrogante.

Quando Jed diz: aceite-me Joe, na verdade ele está dizendo: aceite Jesus em sua vida, aceite a religião. Esqueça suas idéias a respeito da evolução, esqueça aquilo em que você acredita, renuncie a ciência. A ciência distorce a verdade, inventa verdades para nos ludibriar e nos afastar de Deus, para nos tirar do caminho, o caminho correto, único e possível.

Falando de “Sábado”, outro romance de McEwan, eu disse numa ocasião que diferente de Borges ou de Machado de Assis que optam por uma espécie de narrador escorregadio em quem não se pode confiar, o autor de “Sábado” se concentrava num tipo de escritura que eu relacionei com Eça de Queiros e os realistas do século XIX; o narrador em terceira pessoa, onisciente que tudo vê, que tudo sabe. Em “Amor sem Fim”, por outro lado, McEwan se mostra um escritor que teria a aprovação de Machado de Assis e Borges. A perseguição de Jed só pode ser coisa de um louco, Joe está certo disso, mas a habilidade do autor nos faz desconfiar de Joe; e se tudo não passa da imaginação de Joe? E se Jed for apenas fruto de sua imaginação de homem que chegou à metade da vida com algumas frustrações e o casamento que parece desmoronar? Clarissa desconfia e sua desconfiança nos contamina. Mas no final tudo é esclarecido, desaparece a ambigüidade e a loucura de Jed se revela para todos. Devemos desculpas a Joe por desconfiar dele. Clarissa mais que todos nós. Mas não poderia ser diferente – e aqui faço minha leitura – não poderia haver ambigüidade, Joe é McEwan e sua sanidade não poderia ser questionada, não num assunto que trata de evolucionistas versus religiosos. Acho que não é por acaso que Christopher Hitchens dedica seu “deus não é Grande” a Ian McEwan.

Nesses tempos de terrorismo quase sempre associado à religião, de republicanos americanos que declaram guerra em nome de Deus – como, aliás sempre fizeram aqueles que se apresentam do lado do bem e da boa moral – , tempos de Osama Bin Laden, de judeus contra muçulmanos, de sérvios ortodoxos contra croatas católicos, sérvios ortodoxos contra muçulmanos bósnios e albaneses, protestantes contra católicos, muçulmanos contra hindus como acontece no Sudão, russos ortodoxos contra muçulmanos chechenos etc, McEwan nos presenteia com uma história que é a perfeita representação dessa histeria.

24 abril 2011

Thor e outras mitologias

Sempre gostei de gibis, às vezes acho que aprendi a ler com eles, talvez mais do que isso, aprendi a gostar de ler, principalmente a ler histórias. É por isso que as primeiras personagens que povoam meu imaginário de criança são os heróis da Marvel como o Homem Aranha, Capitão América e Thor. É verdade que depois eu conheci o deus nórdico; li mitologia e me inteirei da história, mas isso só mais tarde, na minha adolescência Thor foi para mim um dos Vingadores com sua armadura inspirada nos romanos e seu elmo com asas. Mas Thor foi um dia cultuado pelos pagãos germânicos. Um dia foi um deus dos mais valentes e queridos, aquele que representava a força da natureza, filho de Odin e esposo de Sif, deusa da colheita. Também descobri que Thor é identificado com Júpiter porque dividem a mesma maternidade da Mãe - Terra e como protetores da comunidade têm o carvalho como símbolo. Tácito o identifica com Hércules.

Fico imaginando o que pensariam aqueles que um dia cultuaram o deus do trovão – refiro-me aos antigos alemães, noruegueses, dinamarqueses, irlandeses e anglo-saxões, muito antes da sanha cristã – se pudessem ler o futuro e descobrir que seu deus um dia seria reduzido a herói de histórias em quadrinhos, coisa de criança, mero entretenimento. Sandice. Mais do isso: blasfêmia. Mas o fato é que Thor, que já não bastava ser morto por Jormungandr, a grande serpente, não passa hoje de mitologia, e por isso não é desrespeitoso integrá-lo a equipe dos Vingadores, ao lado de Vespa, Homem formiga e Visão.

Thor, o personagem dos quadrinhos, foi criado por Stan Lee, Larry Lieber e Jack kirby, e sua primeira aparição deu-se em 1962, na número 83 da Journey into Mystery, nos Estados Unidos. Confesso que não leio mais as histórias do deus do trovão com o mesmo entusiasmo que fazia nos meus 13 anos, mas continuo gostando de quadrinhos, a maioria com uma proposta voltada para a arte – hoje reconhecida – e temáticas adultas como são os gibis de Robert Crumb, Crepax e Art Spiegelman. Mas ainda gosto de quadrinhos de aventura. No final dos anos 90 descobri o Selo Vertigo e desde então compro e leio as histórias do John Constantine e Jesse Custer.

O que tem essas personagens que ver com Thor? É fácil responder, assim também como este aqueles também se valem da exploração de uma mitologia. Enquanto para os criadores de Thor a mitologia nórdica ofereceu os elementos necessários para a criação ou recriação do universo da personagem do gibi da Marvel, para Constantine e Jesse Custer, a mitologia é outra, uma mitologia ainda em voga, na qual os homens de boa fé depositam credibilidade e alimentam esperanças. Uma mitologia que até então só era vista como mitologia pelos desapaixonados, materialistas e subversivos do senso comum. Uma fabulação inverossímil que vinha sobrevivendo como ideal platônico finalmente desmistificado por Diógenes.

Constantine é uma espécie de bruxo, versado nas artes da magia, capaz de conjurar o demônio ou exorcizá-lo, sempre às voltas com o deus dos cristãos e Lúcifer que deseja ardentemente sua alma. Jesse Custer, por sua vez, é um pastor em crise de fé, que acaba possuído por Gênesis, uma entidade poderosa, filho de um anjo e um demônio. Ao lado de Tulipa, sua namorada e o vampiro irlandês chamado Cassidy, Jesse empreende uma verdadeira cruzada para encontrar Deus (ele mesmo, Javé) que abandonou o céu e ninguém sabe seu paradeiro.

Num texto que li no Google, alguém comenta que “os tenazes e engenhosos missionários do cristianismo persuadiram os homens do Norte a adotar a religião mais branda.” Referindo-se aos pagãos que substituíram Thor por Cristo. Não sei quem foi que escreveu tamanho disparate nem quero saber, mas a tal persuasão foram quatro séculos de perseguição, morte e tortura provocada pelos tais tenazes e engenhosos missionários contra os “bárbaros”.

Nos nossos tempos o deus atual parece que também se encaminha para seu lugar que é a mitologia. Uma prova disso está na exploração dele como produto de mercado do entretenimento. Filmes e gibis que são comercializados para deleite de um público que representa a grande massa de consumidores. Todo mundo agora partilha da mesma opinião de que não é desrespeitoso integrar Thor ou qualquer outra divindade a equipe dos Vingadores. O deus de Constantine é o mesmo de Jó que apostou com o diabo a cabeça do homem e Jesse Custer, em sua procura por Deus, é como aquele homem que vai à missa ou ao culto, são personagens de ficção ou fabulação do tipo usada para entreter as crianças enquanto aguardam o sono. Personagens que nos divertem porque nos transportam da realidade para um mundo de pura magia.

22 março 2011

Uma provocação às mulheres

Há um livrinho de Diderot de que eu gosto muito, ali já encontramos os fundamentos que resultarão mais tarde na obra que o notabilizou como ateu. O passeio do Cético é de fato um delicioso convite à leitura. São diálogos de Diderot consigo mesmo a respeito de questões de sua época, principalmente religião e política.

Na primeira parte ou primeira alameda, Cleóbolo, amigo de Aristo (não confundir com Aristóteles, o arquiteto), discorre sobre o Cristianismo e o faz a partir de metáforas militares. O deus dos cristãos é um príncipe, o papa é vice-rei e os governadores bispos etc. É impiedoso na sua analise da Igreja e nela não escapa ninguém que não seja orgulhoso, avarento, hipócrita, velhaco ou vingativo. Refere-se a alma como roupa que segundo os preceitos preconizados pelos sacerdotes deve estar sempre limpa de máculas, muito embora a deles, dos párocos e toda a hierarquia eclesiástica está encharcada da lama mais abjeta.

Com o povo judeu e Moisés é sarcástico quando reconta a história “sagrada” do povo “eleito”. Os crédulos não são poupados; para Diderot não passam de imbecis por acreditarem em disparates como a fuga do Egito, Canaã, o dilúvio e demais episódios descritos no Velho Testamento .

Há muitos contestadores dos dogmas religiosos. Encontram-se no passado e no presente. De Jean Meslier a Richard Dawkins a lista é enorme, mas curiosamente não encontramos mulheres entre tais iconoclastas. É claro que eu posso estar enganado, mas uma coisa, pelo menos, posso afirmar com convicção: tais mulheres atéias ou agnósticas são decerto insignificantes numericamente se comparadas aos homens.

É comum que as mulheres apóiem seus maridos em projetos ou empresas, mas não foi o que aconteceu com Emma Wedgwood, a esposa de Darwin. Alguém vai dizer que esta senhora era uma típica mulher de seu tempo, educada por seus pais para ser temente ao deus cristão. Sem dúvida. Como muitas de suas contemporâneas, certamente Emma também se enquadrava na regra. Mas não é necessário um salto tão grande no tempo. Nesse particular – o da fé das mulheres – sou capaz de arriscar dizer que as coisas não mudaram muito. Uma prova disso eu obtive outro dia, assistindo a um dos programas Roda-Viva, apresentado por Marília Gabriela. A entrevistada da vez era uma geneticista. Não me lembro seu nome, mas nos dias de hoje é, ao que tudo indica, alguém respeitado na comunidade científica do Brasil, por seu trabalho no campo da pesquisa com células-tronco.

A conversa fluiu, surgiram perguntas e respostas. A pesquisa com células-tronco embrionárias ainda está em fase de experiência e esse negócio de manipular e sacrificar embriões causa polêmica. Nenhum religioso fundamentalista que se preze pode concordar com tal insulto ao Senhor. Certamente causaria pesadelos à puritana Senhora Darwin. Termos como clonagem terapêutica, doenças degenerativas, cordão e sangue umbilical me fizeram lembrar o laboratório do Dr. Moreau. Mas o mais delicado ainda estava por vir, e a pergunta que todos aguardavam finalmente foi feita: e Deus, perguntaram, como é que fica?

Pois é, a resposta dela não me surpreendeu, ela disse que apesar de acreditar na evolução, também acredita no deus católico. Gosta da idéia de um deus que é pai, misericordioso e que tem como único propósito amar e perdoar, além de reservar para o filho – no caso dela, a filha – algumas bonificações que incluem proteção e vida eterna.

Toco nesse assunto porque me chamou a atenção uma passagem do livro de Diderot quando diz que “há poucos homens que saibam usar a venda nos olhos (referindo-se a alienação religiosa) tão bem quanto as mulheres.” O caso, claro, exige atenção, não entrevistei mais do que algumas dezenas de alunas, meia dúzia de amigas e colegas de trabalho e devo dizer que não consultei nenhuma literatura sobre o assunto, mas o fato é que a impressão que carrego é a de que as mulheres parecem sentir uma premente necessidade de fé, de acreditar nos postulados das religiões, e essa necessidade – parece-me – é maior nelas do que nos homens.

Em que podemos nos basear para chegar a algum consenso? Seria a mulher um ser em sua natureza mais propenso ao misticismo do que o homem? É justo o julgamento que fizeram os inquisidores quando queimaram milhares de bruxas na Europa da Idade Média? Ou a mulher não é nada mais nada menos do que a maior vítima de condicionamento cultural sofrido ao longo dos séculos?

Há uma última hipótese, talvez a mais delicada, considerando o enorme salto que as mulheres deram no último século. Delicada porque pode enfurecer alguma feminista de plantão, mas vou registrar assim mesmo em nome da tal provocação. Se de fato fosse provado que a mulher, mais do que o homem, sente necessidade de relacionar-se com um pai eterno, esperando dele conforto e segurança, não seria essa nostalgia do Pai um indício de que o posto avançado da liberdade – no sentido filosófico, se preferirem – ainda não foi conquistado por elas?

07 fevereiro 2011

Da arte de não ler

Schopenhauer temia que o estudo dos clássicos estivesse ameaçado já no seu tempo. Com efeito, tal risco se evidenciava na sanha ignorante dos leitores contemporâneos do filósofo que – segundo o próprio – pareciam mais interessados nas publicações da moda, livros ruins, segundo ele, escritos por escritores que não viviam para a ciência ou para a poesia, mas da ciência ou da poesia. O pessimista, com boas razões para sê-lo, e que não foi lido em vida, tendo seu valor só reconhecido postumamente, lamentava profundamente a indiferença de seus contemporâneos preocupados com o livro como mero entretenimento – os romances de Eugênio Sue, por exemplo – ou aqueles de abordagens superficiais e não raro equivocadas dos filósofos.

Engraçado como nós às vezes achamos que certos males de nosso tempo são exclusivos de nosso tempo e não um fenômeno também verificado em épocas que consideramos de ouro. Schopenhauer denuncia a futilidade dos leitores de seu tempo e o faz de tal modo que nós – fossemos seus contemporâneos – poderíamos arriscar dizer que era o despeito e não uma análise impessoal aquilo que o movia.

O livro de que trato é o seu: Sobre o ofício do escritor, por sua vez dividido em três partes. Estas impressões são Da leitura e dos livros, o capítulo considerado por mim mais curioso, tão contemporâneas me parecem as preocupações ali manifestadas pelo autor. Curioso é sem dúvida o lamento do escritor num tempo em que o livro figurava como protagonista; constituindo quase sempre entretenimento e fonte de saber dos homens de letras de um tempo e de uma Europa que posava de paradigma cultural do mundo ocidental.

Acho que Harold Bloom estava pensando em Schopenhauer quando afirmou numa entrevista que não acreditava numa criança como leitora de futuro que tivesse sua iniciação com livros comerciais como Harry Potter, por exemplo. Segundo o crítico americano, o estrago seria tão alarmante que a criança, uma vez adulto, continuaria refém de um intelecto atrofiado, e permaneceria lendo e relendo o livro do bruxinho por toda a vida sem jamais (nevermore) permitir-se leituras mais ousadas e desafiadoras. Feitiçaria ou não, o fato é que as palavras de Bloom encontram correspondência numa das máximas do livro do filósofo que diz: “Livros ruins são um veneno intelectual: estragam o espírito”.

E por isso, aos leitores que se reconhecerem nessa categoria, o filósofo aconselha mui sabiamente que “não ler é de máxima importância”.

31 janeiro 2011

um homem sério

Num de seus ensaios: De como julgar a morte, Montaigne nos adverte sobre nossa tolice, arrogância ou ilusão com que encaramos nossa morte, algo como se “tudo sofresse, de algum modo com o nosso desaparecimento.” De fato, não é possível encarar o fim, o nosso em particular, senão com perplexidade, mas isso não quer dizer que o que experimentamos possa ser alguma coisa diferente de ilusão. A mais pura e simples.

Rejeitamos a hipótese de Sísifo, e em tudo o que fazemos tratamos o mais convictamente possível de pôr ordem e significado. Se excetuarmos a natureza tudo o mais é o resultado desse esforço. A obra que construímos – família, sociedade, democracia, religião etc – é o que nos mantém centrados, estamos no caminho certo, diz o homem sisudo, para tudo há um propósito, repete para si mesmo o homem sério em sua oração matinal, e assim salmodiando convencemos a nós mesmos de que somos especiais, talvez até filhos de deus, quiçá feitos à sua imagem e semelhança.

Desse modo encontramos respostas para tudo, até para as desgraças nas quais nos flagramos vítimas; nossos infortúnios não são obra do acaso, são provações. Nesses momentos encontramos consolo no inconsolável Jó, somos seu irmão, desfrutamos o privilégio da preferência de deus. É como entendemos a vida se queremos emprestar-lhe sentido, e isso nos basta, mais que isso: nos fortalece, nos faz sentir especiais – alguns judeus desacreditaram de deus depois do holocausto, outros passaram a se sentir especiais, o mesmo ocorre com os argentinos depois que amargaram as ditaduras – o sofrimento nos eleva porque nele há um propósito divino.

Somos eternos. Cada ato ou pensamento dos quais somos ator e autor é aquilo que mais interessa ao responsável pelos buracos negros no espaço infinito.

Mas num dado momento, provocado por uma coisa ou outra, num sonho ou delírio, sentimos que cai a ficha e tudo ao nosso redor, tudo o que o homem construiu e se orgulha; a ordem a qual nos julgávamos pertencer, tudo não passa da obra de um sátiro e nossa verdadeira herança é o malogro. Foi essa a sensação que experimentei na última cena do filme: Um homem sério, dos irmãos Coen.

28 janeiro 2011

um olhar equivocado

Às vezes uma pessoa se relaciona com um objeto: cidade, povo, língua ou outro alguém, a partir de um viés. Um olhar que apesar de exíguo, pouco fundamentado ou carente de experiência, torna-se a base em torno da qual é formulada uma idéia, impressão ou coisa outra fugidia que na falta de um termo melhor chamamos preconceito. A pessoa não sabe que é preconceito, na sua ingenuidade ou burrice está convicta daquilo que chama: opinião.

A tal idéia ou impressão – preconceito – nasce do equívoco, da precipitação, da incapacidade de interpretar a realidade ao seu redor ou nasce do ódio, do despeito, da inveja. Uma pessoa presa de tal sentimento é normalmente alguém com forte propensão ao fanatismo. Nem precisaria dizer isso, já que me referi ao ódio. Mas o ódio tanto nasce de um grande conflito como entre Israel e a Palestina em que todos estão certos e errados ao mesmo tempo, um conflito que passa de geração para geração e encontra correspondência no mito da Torre de Babel e sua metáfora da complexidade que resulta em morte e sofrimento como pode ser um conflito entre torcidas diferentes por times de futebol.

Há entre brasileiros (não todos) e argentinos (idem) algo assim. Conheço pessoas que detestam a Argentina embora nunca tenham viajado até lá nem lido nada sobre o país tampouco conhece sua música ou literatura. Alguns nem sabem que na Argentina se fala espanhol, mas detestam a Argentina e os argentinos e tudo o que ali possa ser identificado com a natureza ou cultura e o fogo que alimenta tanto ódio e estupidez se chama futebol. Não gosto da Argentina, diz o imbecil, porque somos rivais no gramado. Uma pessoa assim devia comer de vez em quando o gramado.

Uma coisa bem parecida acontece com algumas pessoas e seu olhar sobre os judeus. Não falo necessariamente dos palestinos porque é uma questão complicada, mais do que muita gente pensa, mas de tipos como os nazistas que odiaram um povo com base em teorias disparatadas que apontavam para superioridade e inferioridade de raças ou alguns cristãos que vêem nos judeus os assassinos de Cristo ou pessoas outras que não gostam de judeus por considerá-los arrogantes quando se auto intitulam os legítimos filhos de deus. Motivos não faltam, todo mundo conhece a história dos protocolos dos sábios de Sião, o documento que apresenta os judeus como conspiradores para dominar o mundo. Os protocolos são uma farsa, sobre isso não pode restar dúvida nenhuma; é inconteste sua fraudulência, há provas e mais provas. Muita gente, judeu ou não, já vasculhou todos os cacos no porão. Entre outras evidências, é sabido que a farsa se inspirou nos romances de Eugène Sue e O diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu de Maurice Joly, um satirista francês do século XIX, mas apesar disso muita gente ainda acredita – Ahmadinejad acredita – na legitimidade dos protocolos.

A visão estreita é ditada pela ignorância. Eu confesso que não gosto do fundamentalista judeu como não gosto do fundamentalista de qualquer outra religião. Acho que a religião mais afasta do que aproxima e sem dúvida concordo com certo músico de Liverpool – assassinado por um fanático. Mas talvez ainda não estejamos – nem todos estão – preparados para um mundo sem religião. Um mundo assim ainda é uma utopia como é utópica uma sociedade anarquista. Já imaginou uma sociedade que não precisasse de polícia?, mas é inegável que o homem caminha e grandes passos foram dados. Na Europa do século XII seria impensável um Estado Laico.

Não consigo evitar minha admiração pelos judeus, não necessariamente pelo sionista ou judeu que apóia a política de Israel quando o assunto é a Palestina tampouco por aqueles que se julgam os escolhidos. Escolhidos para quê? Para o extermínio nos campos de concentração? Para o exílio? Se deus existe e é pai de alguém, certamente não é dos judeus; para os judeus ele tem sido um padrasto e um padrasto muito severo. Quando penso nos judeus não é para o religioso que devoto minha admiração, mas para o homem ou mulher capazes de transformar sofrimento em vitória senão em arte. Penso em Kafka (que nem sabia que era judeu), em Primo Levi (sobrevivente de Auschwitz), Singer que fazia questão de escrever em iídiche) ou Philip Roth (ateu convicto), além de John Updike e Isaac Bábel (assassinado por Stálin)e Art Spiegelman e seu gibi sobre o holocausto ganhador do Pulitzer e Will Eisner, por que não? e os irmãos Coen e Woody Allen e muitos outros que a lista é extensa.

Uma vez eu segurava um livro e esperava minha vez numa fila para o autógrafo do autor. O livro é O último cabalista de Lisboa, e o autor, o judeu Richard Zimler, um tipo engraçado, alto, magro e de nariz incrivelmente longo. Uma pessoa na fila olhou para mim e disse o que pensava dos judeus: um povo incrível, ele disse, você sabia que proporcionalmente ninguém ganhou mais Nobel do que os judeus? Não, eu não sabia, mas não fiquei surpreso. Juro que não fiquei.