09 junho 2010

Indignação

Tenho lido tudo o que vem sendo publicado do Philip Roth aqui no Brasil, nos últimos anos, e venho fazendo isso desde quando descobri o autor, a coisa de uns dez anos e por puro acaso. O livro que veio parar nas minhas mãos, por força do destino, foi O Teatro de Sabath. Encontrei-o na prateleira da livraria – pequena livraria que, me parece, ainda funciona num quartinho – minúsculo quartinho – na faculdade onde cursei letras no final dos anos 90. Carlos, o dono da bodega de livros, disse que o romance veio parar ali por engano – nas prateleiras só havia livros técnicos, muita coisa de biologia e história e também pedagogia e outros livros que propunham conhecimento e pragmatismo – os clientes do Carlos não perderiam tempo com livros inúteis – e por isso o Teatro estava sendo vendido por um preço realmente ridículo, só pra desocupar espaço na prateleira, disse-me o Carlos. Li o comentário na orelha do livro e o comprei. Mas não foi o enredo ou a informação de que o autor havia conquistado o pulitzer aquilo que me fizeram comprar. Minha maior motivação, devo dizer, foi mesmo o preço, uma ninharia.

Li o livro alguns dias depois e aí não parei mais, vieram depois dele Pastoral Americana, A Marca Humana, Homem Comum e muitos outros como o impagável Complexo de Portnoy. Todos publicados no Brasil. Gostei de cada um deles, uns mais que outros, mas gostei de todos e hoje, dez anos depois do Teatro de Sabath, posso dizer que sou um fã. Sem carteirinha nem gritinho. Apenas fã. O que o Philip Roth escreve eu compro e leio imediatamente, mesmo quando estou interrado até o pescoço noutros projetos de leitura.

Por esses dias li Indignação, seu penúltimo romance – o último já saiu, chama-se A humilhação – nele Roth conta a história de Marcus. Ao contrário de outros personagens que sofrem as pressões da velhice, este é jovem, e nem por isso menos trágico.

Vamos começar do começo, bem simples, não vou dizer tudo, imagino que muita gente ainda não leu e prefere ficar sabendo do desenvolvimento da narrativa pelo próprio Philip Roth, mas é preciso dizer que Marcus, o narrador, conta sua história do mundo dos mortos como o nosso Brás Cubas – isso fica patente na orelha do livro – logo não estou adiantando nada. Pois bem, Marcus, o autor defunto é um menino de 18 anos e estava na faculdade quando tudo começou, o contexto é do início da década de 50 quando seu pai é açougueiro kosher, isto é, vende carne sem sangue para judeus. Os EUA estão em guerra contra a Coréia e Marcus, que perdeu dois primos na Segunda Guerra, morre de medo de ser convocado para ser recruta zero e morrer. E se morrer é uma coisa estúpida e nos desafia os sentidos, morrer na guerra é ainda mais estúpido e sem sentido. Ele é um bom garoto, e de tão bom chega a ser perfeito, sua mãe acha isso, seu pai e todos os vizinhos judeus compradores de carne kosher também concordam. Dedicar-se aos estudos, portanto, que ele já fazia por vocação, pois é menino prodígio, autodidata e leitor dos bons, agora com a guerra e a possibilidade de virar estrume na Coréia, passa a ser, além da única via possível de interromper a tradição de açougueiros da família, a estratégia de que precisa para driblar o Tio Sam e não ser convocado ou pelo menos não ser convocado como soldado raso com todas as chances possíveis de efetiva participação no front.

Vamos lá. Ele sai de casa para fugir do pai porque o senhor açougueiro teve uma coisa, pirou, teve um surto, foi acometido pela síndrome do pânico. De repente ficou desesperado com a idéia – fixa – de que algo de ruim pudesse acontecer com o filho. Único filho. E esse desespero não tinha motivos. Tudo bem que havia a guerra, mas a guerra não convocaria o Marcus, e sobravam motivos pra isso, ele não se enquadrava no perfil de bucha de canhão, estava se graduando, era o melhor da classe. Aluno nota dez. Graduar-se ou se casar valia uma dispensa da guerra. A fixação do pai, portanto, era doença. É a mãe de Marcus quem reconhece isso. Fica claro na conversa entabulada com o filho quando vai visitá-lo no hospital. É ela quem fala do marido, hoje um desconhecido, tão diferente do açougueiro kosher com quem se mantivera casada todos esses anos, alguém que sempre conseguiu se manter na linha, justo, coerente e honesto, um homem de quem ela sempre se orgulhou e agora sentia medo. Tanta é sua convicção de que o marido não é mais o dr. Jekyll, que está disposta a se divorciar dele. Mas não se divorcia, e a isso se deve o acordo que faz com o filho. Ele não devia se encontrar mais com a namorada que cortou os próprios pulsos. Em troca disso desiste do divorcio e volta para Mr. Hide.

Pois é, há a namorada. A garota que faz sexo oral no primeiro encontro e deixa o Marcus meio desorientado. Mas nós estamos na década de 50, estamos nos EUS de maioria cristã e o Marcus, mesmo sendo ateu e dono de bom discernimento, ainda é um homem do seu tempo. Está preso a valores, mesmo àqueles que ele despreza e que, não fosse a precoce interrupção da vida, provavelmente superaria. Nós estamos – insisto – no início dos anos 50, ele só tem 18 anos e há a guerra. A famigerada guerra é a grande causadora do stress.

Pois é, o stress. Marcus não é inconseqüente juvenil como Ícaro, ele não é frágil, impetuoso ou cheio de ódio – talvez um pouco de ódio – mas um ódio por ser incompreendido, por tipos como o diretor e os dois alunos com quem ele divide os dois primeiros quartos. Um deles, o Betram Flusser, que faz barulho e não deixa o colega estudar. Pronto, se muda e quando se muda uma segunda vez o faz por razão diversa, mas ainda assim razão: o Ewleyn Jr. ofende a menina por quem Marcus se julgava apaixonado. Deixa o quarto, procura outro, qual o problema?

O problema é que desta vez tem que se explicar com o diretor da faculdade que o convoca a seu gabinete. Tem de explicar por que em tão pouco tempo mudou-se duas vezes. Marcus explica ou pelo menos tenta. E por mais que se explica não se faz entender. Não adianta dizer que o Betram é um vagabundo, esse sim um inconseqüente, que não deseja estudar nem deixar ninguém estudar. O diretor, que é religioso, e obriga a todos os alunos, cristãos e judeus, além dos ateus, a assistirem ao culto, ministrado por ele próprio, está disposto a não levar em consideração os argumentos de Marcus. Sobre o aluno já formulou seu conceito. E o conceito formulado por ele é de que Marcus está fugindo, do pai, do açougue, dos colegas de quarto, da guerra etc.

Então é a vez de Marcus pirar. É muita pressão, do pai, da guerra, dos colegas de quarto, da mãe e sua chantagem, da namorada que se decepcionou com ele, com sua reação de homem da década de 50 que não consegue encarar numa boa o fato de ser chupado no primeiro encontro e por fim aquele diretor Caudell e seu interrogatório despropositado, um tipo detestável de dono da verdade a quem Marcus considera supersticioso e limitado. É interessante o diálogo dos dois, quando Marcus, cansado de não conseguir se fazer entender na sua enésima tentativa de explicar as razões que o levaram a mudar-se duas vezes, explode e acaba dizendo tudo o que pensa do diretor e da maneira como ele conduz a faculdade obrigando os alunos, independentemente de suas convicções, a freqüentar o culto religioso. Philip Roth, no discurso da personagem, reproduz trechos inteiros de "No que acredito" de Bertrand Russell, livro considerado blasfemo pelos religiosos.

Então Marcus perde o controle das coisas e suas ações mais banais resultam no desfecho trágico. Mais do que Ícaro e sua queda provocada pela inconsequencia juvenil, a queda de Marcus não é tão simples, pois carrega consigo uma boa dose das pressões provocadas por quem não quis ou não pôde entender suas razões mais simples de encarar o mundo e levar a vida.

3 comentários:

Paulo Gervais disse...

veja como(parece,eu não lí o livro)as razões mais simples,e aparentemente sensatas,que temos,aos outros pode parecer loucura e levar a gente à loucura,guiado pelo entendimento (ou desentendimento,é a mesma coisa...) alheio.
abraços.

Ars von Otheles (from Acqualand) disse...

Também não li o livro, parece, mas pode até ser sido um outro diferente e pensei que teria sido, sem ser. As coisas aparentemente sensatas são uma contradição de termos porque aquilo que parece sensato não pode ser sensato. Sensato é. Se parece, não é ou talvez não seja. De qualquer modo, não parece sensato achar sensato algo que pode parecer sensato, porque, se parece sensato, apenas, pode não ser sensato, o que não é sensato.
O entendimento do que é sensato pode ser na realidade um desentendimento, o que, por sua vez, não é absolutamente sensato.
A sensatez é um sentimento alheio ao entendimento ou a sua antítese, o desentendimento, entretanto, apenas se for sensato pensar assim.

Cristhiano Aguiar disse...

Nivaldo, te mandei um e-mail urgente pra vc participar de uma antologia de contos. Vc recebeu?

Grande abraço!