05 maio 2010

Wilmot e Meslier

Clarence Wilmot, ministro presbiteriano, é um personagem interessante do John Updike. No romance, Na Beleza dos Lírios, ele é um religioso que resolve – para poder argumentar a favor de sua fé – ler autores como Nietzsche e Darwin a fim de refutá-los. Acontece, porém, que o tiro sai pela culatra e o ministro, ao invés de refutar os argumentos dos materialistas, descobre-se convencido deles. A implicação é perder a fé e se deparar com o absurdo. Durante algumas páginas acompanhamos o drama da personagem que tem sua vida transformada a partir daquele evento – o da perda da fé – de organizada e coerente em caótica. É interessante o conselho que lhe dá um de seus superiores, de que ele continuasse assim mesmo, sem fé, com a prática religiosa. Wilmot, sem temperamento para tanto, e cativo de uma honestidade latente para consigo mesmo, não empreende a farsa e abandona o ministério. É claro que ele sofre todo tipo de recriminação por parte da família que não consegue entender como alguém pode levar tão a sério uma crise de fé. Desistir do ministério significa perder o emprego e a casa paga pela congregação. O resto de sua vida será consumido vendendo enciclopédias para sustentar os filhos.

Eu me lembrei do Wilmot porque acabei de ler Memória, o livro de Jean Meslier, padre ateu que viveu no século XVIII. Diferente da personagem de Updike, o padre que também se descobre sem fé, não abandona o ministério e vive a farsa de ser padre durante quarenta anos. Nesse meio tempo ele vai escrever suas memórias e nelas dizer tudo o que pensa do cristianismo e catolicismo. Sem dúvida nenhuma as memórias o ajudarão a manter a farsa. Imagino o padre, todas as noites, munido de pena, tinteiro e papel, sob a luz bruxuleante de uma vela, fazendo a sua terapia como uma forma de não perder totalmente o respeito a si mesmo. O livro das memórias é seu testamento. Escrever para ser publicado postumamente não o redime da covardia, já que o morto – principalmente para um ateu – não pode mais ser atingido, mas o redime, em parte, da falsidade. Sua prática noturna, algo para a qual certamente exigia muito de um cura de província, semi-letrado, não deve ter sido fácil, mas foi a alternativa que encontrou para compensar uma vida inteira de mentiras.

Tanto numa personagem quanto na outra, uma tirada da ficção, outra da realidade, uma coisa é comum: a atração pela ética. E acho que nesse sentido os ateus ganham de disparada dos religiosos. Enquanto para estes ser ético constitui uma espécie de salvo conduto para a outra vida, sem a qual o prêmio do paraíso estaria comprometido, para aqueles, os ateus, ser ético é uma necessidade para se viver a única vida possível.

Um comentário:

Joaquim Rafael disse...

A propósito, outro dia conversava eu com um aluno, formado em teologia, fiel e diácono de uma determinada igreja evangélica. Dizia-me que, na condição de estudioso – e inteligente – que é, se via constantemente transido por dúvidas e dilemas diante de determinadas contradições da Bíblia e da filosofia cristã. Tentou ajuda com um antigo pastor de reconhecida importância na hierarquia da instituição. Foi contemplado com um conselho que sintetiza a moral dos “formalismos” da fé. A moral que Augusto dos Anjos dizia ser menos dotada de filosofia do que um escarro – diga-se só para lembrar -.
Pois bem, o conselho:
- Nessa nossa senda, meu caro diácono – quanto menos se sabe -, melhor se vive.
Constrição mental? Hipocrisia? Ou simplesmente covardia? O cerne mora naquela frase que você pôs acolá: Há que se manter a dignidade qual o padre escritor das caladas, nem que seja para apenas consigo.
Abraços.