13 abril 2010

leitor de conto

O conto privilegia um texto sutil onde as palavras dizem menos e escondem mais.

Tenho reparado que mesmo bons leitores muitas vezes fazem uma leitura indigente do conto e não percebem nem vinte por cento das sutilezas ali escondidas. Não é uma informação o que se deseja obter no conto, mas uma revelação que exige, muitas vezes, nossa participação efetiva no processo criativo. Leitor de conto não é passivo e para angariar o prazer próprio da leitura lhe é cobrado o preço de certo esforço intelectual. É por isso que nenhum editor no Brasil gosta de livros de contos. Pior do que eles só os de poesia.

Vamos imaginar um conto em que um velho compra a casa onde nasceu e se estabelece nela de posse de seis garrafas de vinho. Uma vez ali estabelecido ele começa a tomar as garrafas e lamentar o fato de ter deixado um livro de poemas do Sá-Carneiro no hotel. Promete a si mesmo pegar o livro na primeira oportunidade que nunca aparece. Os vinhos são mencionados e todos são exemplares de uma adega de um homem ao mesmo tempo de posses e de bom gosto. Nesse meio tempo o leitor começa a suspeitar de que há algo estranho e aquele homem possivelmente veio ao encontro da morte. É interessante notar que o poeta português mencionado foi suicida. A suspeita se confirma quando nos últimos parágrafos ficamos sabendo que antes de comprar aquela casa e fazer sua viagem solitária, aquele homem enterrara a própria mulher. O conto termina quando ele relembra o projeto que se desenhou na mente enquanto faziam descer o caixão de Helena, sua esposa, tal ação narrativa se desenrolaria mais ou menos assim:
comprar a casa e mudar-se pra lá de posse apenas de um livro, provavelmente o que estivesse lendo, e algumas garrafas de vinho. As melhores de sua adega. O passo seguinte era fácil. Não comer nada, só vinho e quando as garrafas secassem nem isso.”

O patético suicídio por inanição parece encontrar na morte da mulher o possível motivo e é, certamente, essa a conclusão do leitor apressado.

Pois se não, vejamos. Se ele queria apenas se matar por causa da mulher morta, por que compra a casa onde nasceu?, não haveria nisso nenhum outro propósito?, a casa onde nasceu é provavelmente a metáfora de que o autor precisa para de novo confrontá-lo com seus fantasmas. Essa história, a outra história, que o Ricardo Piglia chama de secreta é aquilo que mantém a tensão do conto e o justifica como obra literária.

O senhor de quase oitenta anos, dono de uma cultura literária e uma adega comprada a custa de uma pequena fortuna foi uma criança quebradiça, debilitada e que por uma estranha razão sobreviveu aos outros, a seu pai morto de câncer aos 37 anos e seu irmão, ainda criança, morto num estúpido acidente automobilístico. Essa é a história que nos é contada nos flashbacks que aparecem entre uma garrafa de vinho e outra. Cada um deles é um pedaço do quebra-cabeça que vai construindo aos olhos do leitor o perfil da personagem.

Basta prestar a atenção, num momento e noutro ele se pergunta por que não morreu no lugar do irmão e lamenta não ter herdado o câncer do pai. Voltar a casa, portanto, é retomar o fio da discussão e continuar a inquirir o absurdo da existência que não nos poupa o sofrimento da perda. Ele deseja se matar porque não suporta a morte. É a história de um homem revoltado com o absurdo de existir e que vê na morte da mulher a gota d’água de que precisava para dar um basta.




4 comentários:

Helder Herik disse...

"O conto privilegia um texto sutil onde as palavras dizem menos e escondem mais."

meus textos dizem tudo, por isso não são contos, são crônicas 'narrativas', a exemplo do que fez Rachel de Queiroz, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, cronistas que você nunca leu por puro pré-conceito a crônica e a literatura brasileira, seu pilantra.

Sábado nos reunimos.

Negro Sangue disse...

É o que dizia Cortázar e eu o cito a comparação é dele: nocalte no primeiro assalto.

Erick Camilo

Joaquim Rafael disse...

Literatura, caro Nivaldo, é arte. A arte não conta, deixa ver dentro, move sentimentos, remove, faz “em-moções”. Quando li esse conto, um tempo atrás, senti tudo isso que você explicou agora, só que não sabia. Agora que você contou sei, mas, perdeu a graça! Socorre-me Manuel de Barros quando fala de um riacho feito cobra de vidro que corria mole no quintal da sua casa de infância, um dia passou um homem e disse que aquilo era uma enseada, aí, perdeu o encanto.

Ars von Otheles disse...

Alguém aí troca uma de dez?