Num dos contos de Detalhes de um Pôr-do-sol, Nabokov – ou a personagem de Passageiro – compara a página de literatura com a vida e entre uma e outra – em termos de complexidade e sucessão de eventos absolutamente não condicionados a uma idéia de ordem e concisão artística – lamenta a subordinação do artista que necessita modificar tais elementos que a realidade fornece para somente assim alcançar “uma espécie de harmonia convencional e concisão artística”.
No conto, a personagem – um escritor –, narra para outra personagem – um crítico – uma história por ele vivenciada. Nada de mais. Um episódio dos mais simples. Está num trem e faz uma viagem noturna. Numa das paradas ele acorda – pois está deitado na cama beliche – e percebe que há um novo passageiro na cabine. O sujeito está sentado na cama de cima e seus pés balançam enquanto se prepara para dormir. O escritor acorda com o movimento que faz os pés do outro e fita aqueles membros. Na verdade se detém e na descrição que faz enfatiza algumas particularidades como o fato de serem repelentes. Por fim os pés desaparecem debaixo das cobertas e seu dono passa a reproduzir um choro ou grunhido que se estende – com uma pequena interrupção aqui e acolá – durante a noite. O escritor, desperto, não tem alternativa senão acompanhar o lamento do outro, enternecer-se e se angustiar tentando imaginar sua origem. A noite é longa e o choro parece não ter fim, mas num dado momento o escritor é vencido pelo sono. Na manhã seguinte é despertado pelo camareiro. Levanta-se e nota que seu vizinho deixou de chorar – ninguém sabe a que altura da noite – e dorme profundamente enrolado dos pés à cabeça. O escritor, contando a história ao crítico, parece querer alimentar certo mistério em torno da identidade daquele homem que dorme. Mas o deixa para trás e ganha o corredor no momento em que o trem pára numa estação onde um grupo de policiais entra chamando a atenção de todos. Os homens da lei estão procurando por um assassino que matou a mulher adultera e que, ao que tudo indica, se encontra naquele trem. Eles revistam a todos e se dirigem para a cabine onde dorme o homem que passou a noite chorando.
Está tudo esclarecido, portanto, e o leitor esperto já adivinhou: o choro daquele homem durante a noite é o resultado de uma alma que sofre as dores de consciência próprias de quem cometeu um ato ignominioso. Mas o que se segue, entretanto, é o que a vida oferece e não a arte. O homem mostra os documentos e logo fica esclarecido que não se trata do assassino. Decepcionante?, talvez, mas são as tramas da vida, bem mais complexas, caóticas e reticentes do que aquelas oferecidas pelo escritor que usa “truques pessoais para dar sabor a nossos plágios insossos” da realidade.
2 comentários:
He! He! He! O chorão do trem enganou todo mundo, até o autor!
Acho que a passagem do bezerro de ouro, como o velho testamento todo, é alegórica. A mensagem talvez seja a de que a religião é mais do que um padrão de conduta, é uma necessidade cultural, veja: Moisés demorou a trazer o código e a galera já tratou de arranjar algo para cultuar. A fúria do patriarca se justifica com a mesma explicação para o medo dos ícones por parte do clero: a concorrência, mesmo com um produto de inferior qualidade, é sempre concorrência. É o que me parece.
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