Os romances de Vila-Matas são oportunidades para conversar sobre livros e escritores: O Mal de Montano é assim e Batlerby e companhia também. Ele me lembra Borges, não o escritor – se é que podemos separar as duas figuras –, mas o leitor. Borges disse certa vez que se sentia capaz de passar 24 horas falando sobre literatura. Seus livros atestam isso. Neles o tema mais recorrente é o do mundo representado pela biblioteca. Os contos são ensaios sobre livros. São famosos seus prólogos. Vila-Matas se identifica com Borges, certamente é seu leitor da vida inteira e assim como o escritor argentino ele também se sente atraído pelos livros.
De fato. Até a página 179 – de um total de 252 – o leitor deduz que Viagem Vertical é uma história contada em terceira pessoa que tem como protagonista Mayol – um velho aposentado, dono de uma empresa de seguros que vê a vida vir abaixo no dia em que a mulher lhe faz um estranho pedido. Ele vai desembarcar na Madeira, em Portugal, sem rumo e sem tino, onde encontra por acaso o sobrinho a quem não via fazia anos e que como o tio, também passa por uma crise. Dono de uma solidão que não consegue conter no peito, a personagem ver-se na sua viagem vertical.
Ao que tudo indica Mayol levava uma vida normal, estava aposentado, havia passado a empresa para o comando do primogênito – de quem se orgulhava – e se distraia do fim apostando na convicção de que deixava as coisas em ordem e se sua vida chegava nos últimos momentos, ao menos fez sentido, afinal construiu algo de sólido como a família e a empresa milionária. Em outras palavras, o fim não era encarado com perplexidade, mas com conformismo e parcimônia.
Algo, entretanto, acontece que vai tirar o ancião de tempo. O pedido absurdo da mulher é que ele desapareça da vida dela. A esse choque vem juntar-se a decepção com o filho mais velho que se diz cansado da empresa e do casamento e pior que isso; o ressentimento que nutre pelo filho Julián, um pintor excêntrico que se julga o próprio Toulouse-Lautrec vivendo na Paris boêmia dos anos vinte. Esse filho caçula e solteiro de 42 anos é um imbecil da cabeça aos pés apesar de ser homem culto e instruído. Num episódio recente, recordado por Mayol enquanto caminha pelas tumbas de um cemitério, chama o pai de inculto. Ora, o complexo de inferioridade por ter freqüentado a escola só até os catorze anos é uma frustração que Mayol carrega. Recordar-se da declaração do filho no momento de crise desencadeada pela expulsão da mulher só piora as coisas e o faz se sentir como a última das criaturas.
Na página 179 nos surpreendemos com o narrador. Não é onisciente, não é Vila-Matas, mas o gerente do hotel onde está hospedado Mayol na Madeira. Esse gerente se interessa pela história do velho e vê nela a oportunidade de escrever seu primeiro romance, apresenta o hospede a uma espécie de clube literário e a história do homem em crise acaba incluindo conversas sobre o livro – mesmo os que Mayol disse que leu sem ter lido – e nós, leitores de Vila-Matas, reencontramos o autor que não consegue separar a vida da literatura.
Um comentário:
Ler livros que tratam de outros livros amplia nossa visão sobre estas leituras, anteriores. Como se diz na minha terra "é massa!".
Erick Camilo
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