22 março 2011

Uma provocação às mulheres

Há um livrinho de Diderot de que eu gosto muito, ali já encontramos os fundamentos que resultarão mais tarde na obra que o notabilizou como ateu. O passeio do Cético é de fato um delicioso convite à leitura. São diálogos de Diderot consigo mesmo a respeito de questões de sua época, principalmente religião e política.

Na primeira parte ou primeira alameda, Cleóbolo, amigo de Aristo (não confundir com Aristóteles, o arquiteto), discorre sobre o Cristianismo e o faz a partir de metáforas militares. O deus dos cristãos é um príncipe, o papa é vice-rei e os governadores bispos etc. É impiedoso na sua analise da Igreja e nela não escapa ninguém que não seja orgulhoso, avarento, hipócrita, velhaco ou vingativo. Refere-se a alma como roupa que segundo os preceitos preconizados pelos sacerdotes deve estar sempre limpa de máculas, muito embora a deles, dos párocos e toda a hierarquia eclesiástica está encharcada da lama mais abjeta.

Com o povo judeu e Moisés é sarcástico quando reconta a história “sagrada” do povo “eleito”. Os crédulos não são poupados; para Diderot não passam de imbecis por acreditarem em disparates como a fuga do Egito, Canaã, o dilúvio e demais episódios descritos no Velho Testamento .

Há muitos contestadores dos dogmas religiosos. Encontram-se no passado e no presente. De Jean Meslier a Richard Dawkins a lista é enorme, mas curiosamente não encontramos mulheres entre tais iconoclastas. É claro que eu posso estar enganado, mas uma coisa, pelo menos, posso afirmar com convicção: tais mulheres atéias ou agnósticas são decerto insignificantes numericamente se comparadas aos homens.

É comum que as mulheres apóiem seus maridos em projetos ou empresas, mas não foi o que aconteceu com Emma Wedgwood, a esposa de Darwin. Alguém vai dizer que esta senhora era uma típica mulher de seu tempo, educada por seus pais para ser temente ao deus cristão. Sem dúvida. Como muitas de suas contemporâneas, certamente Emma também se enquadrava na regra. Mas não é necessário um salto tão grande no tempo. Nesse particular – o da fé das mulheres – sou capaz de arriscar dizer que as coisas não mudaram muito. Uma prova disso eu obtive outro dia, assistindo a um dos programas Roda-Viva, apresentado por Marília Gabriela. A entrevistada da vez era uma geneticista. Não me lembro seu nome, mas nos dias de hoje é, ao que tudo indica, alguém respeitado na comunidade científica do Brasil, por seu trabalho no campo da pesquisa com células-tronco.

A conversa fluiu, surgiram perguntas e respostas. A pesquisa com células-tronco embrionárias ainda está em fase de experiência e esse negócio de manipular e sacrificar embriões causa polêmica. Nenhum religioso fundamentalista que se preze pode concordar com tal insulto ao Senhor. Certamente causaria pesadelos à puritana Senhora Darwin. Termos como clonagem terapêutica, doenças degenerativas, cordão e sangue umbilical me fizeram lembrar o laboratório do Dr. Moreau. Mas o mais delicado ainda estava por vir, e a pergunta que todos aguardavam finalmente foi feita: e Deus, perguntaram, como é que fica?

Pois é, a resposta dela não me surpreendeu, ela disse que apesar de acreditar na evolução, também acredita no deus católico. Gosta da idéia de um deus que é pai, misericordioso e que tem como único propósito amar e perdoar, além de reservar para o filho – no caso dela, a filha – algumas bonificações que incluem proteção e vida eterna.

Toco nesse assunto porque me chamou a atenção uma passagem do livro de Diderot quando diz que “há poucos homens que saibam usar a venda nos olhos (referindo-se a alienação religiosa) tão bem quanto as mulheres.” O caso, claro, exige atenção, não entrevistei mais do que algumas dezenas de alunas, meia dúzia de amigas e colegas de trabalho e devo dizer que não consultei nenhuma literatura sobre o assunto, mas o fato é que a impressão que carrego é a de que as mulheres parecem sentir uma premente necessidade de fé, de acreditar nos postulados das religiões, e essa necessidade – parece-me – é maior nelas do que nos homens.

Em que podemos nos basear para chegar a algum consenso? Seria a mulher um ser em sua natureza mais propenso ao misticismo do que o homem? É justo o julgamento que fizeram os inquisidores quando queimaram milhares de bruxas na Europa da Idade Média? Ou a mulher não é nada mais nada menos do que a maior vítima de condicionamento cultural sofrido ao longo dos séculos?

Há uma última hipótese, talvez a mais delicada, considerando o enorme salto que as mulheres deram no último século. Delicada porque pode enfurecer alguma feminista de plantão, mas vou registrar assim mesmo em nome da tal provocação. Se de fato fosse provado que a mulher, mais do que o homem, sente necessidade de relacionar-se com um pai eterno, esperando dele conforto e segurança, não seria essa nostalgia do Pai um indício de que o posto avançado da liberdade – no sentido filosófico, se preferirem – ainda não foi conquistado por elas?