31 janeiro 2011

um homem sério

Num de seus ensaios: De como julgar a morte, Montaigne nos adverte sobre nossa tolice, arrogância ou ilusão com que encaramos nossa morte, algo como se “tudo sofresse, de algum modo com o nosso desaparecimento.” De fato, não é possível encarar o fim, o nosso em particular, senão com perplexidade, mas isso não quer dizer que o que experimentamos possa ser alguma coisa diferente de ilusão. A mais pura e simples.

Rejeitamos a hipótese de Sísifo, e em tudo o que fazemos tratamos o mais convictamente possível de pôr ordem e significado. Se excetuarmos a natureza tudo o mais é o resultado desse esforço. A obra que construímos – família, sociedade, democracia, religião etc – é o que nos mantém centrados, estamos no caminho certo, diz o homem sisudo, para tudo há um propósito, repete para si mesmo o homem sério em sua oração matinal, e assim salmodiando convencemos a nós mesmos de que somos especiais, talvez até filhos de deus, quiçá feitos à sua imagem e semelhança.

Desse modo encontramos respostas para tudo, até para as desgraças nas quais nos flagramos vítimas; nossos infortúnios não são obra do acaso, são provações. Nesses momentos encontramos consolo no inconsolável Jó, somos seu irmão, desfrutamos o privilégio da preferência de deus. É como entendemos a vida se queremos emprestar-lhe sentido, e isso nos basta, mais que isso: nos fortalece, nos faz sentir especiais – alguns judeus desacreditaram de deus depois do holocausto, outros passaram a se sentir especiais, o mesmo ocorre com os argentinos depois que amargaram as ditaduras – o sofrimento nos eleva porque nele há um propósito divino.

Somos eternos. Cada ato ou pensamento dos quais somos ator e autor é aquilo que mais interessa ao responsável pelos buracos negros no espaço infinito.

Mas num dado momento, provocado por uma coisa ou outra, num sonho ou delírio, sentimos que cai a ficha e tudo ao nosso redor, tudo o que o homem construiu e se orgulha; a ordem a qual nos julgávamos pertencer, tudo não passa da obra de um sátiro e nossa verdadeira herança é o malogro. Foi essa a sensação que experimentei na última cena do filme: Um homem sério, dos irmãos Coen.

28 janeiro 2011

um olhar equivocado

Às vezes uma pessoa se relaciona com um objeto: cidade, povo, língua ou outro alguém, a partir de um viés. Um olhar que apesar de exíguo, pouco fundamentado ou carente de experiência, torna-se a base em torno da qual é formulada uma idéia, impressão ou coisa outra fugidia que na falta de um termo melhor chamamos preconceito. A pessoa não sabe que é preconceito, na sua ingenuidade ou burrice está convicta daquilo que chama: opinião.

A tal idéia ou impressão – preconceito – nasce do equívoco, da precipitação, da incapacidade de interpretar a realidade ao seu redor ou nasce do ódio, do despeito, da inveja. Uma pessoa presa de tal sentimento é normalmente alguém com forte propensão ao fanatismo. Nem precisaria dizer isso, já que me referi ao ódio. Mas o ódio tanto nasce de um grande conflito como entre Israel e a Palestina em que todos estão certos e errados ao mesmo tempo, um conflito que passa de geração para geração e encontra correspondência no mito da Torre de Babel e sua metáfora da complexidade que resulta em morte e sofrimento como pode ser um conflito entre torcidas diferentes por times de futebol.

Há entre brasileiros (não todos) e argentinos (idem) algo assim. Conheço pessoas que detestam a Argentina embora nunca tenham viajado até lá nem lido nada sobre o país tampouco conhece sua música ou literatura. Alguns nem sabem que na Argentina se fala espanhol, mas detestam a Argentina e os argentinos e tudo o que ali possa ser identificado com a natureza ou cultura e o fogo que alimenta tanto ódio e estupidez se chama futebol. Não gosto da Argentina, diz o imbecil, porque somos rivais no gramado. Uma pessoa assim devia comer de vez em quando o gramado.

Uma coisa bem parecida acontece com algumas pessoas e seu olhar sobre os judeus. Não falo necessariamente dos palestinos porque é uma questão complicada, mais do que muita gente pensa, mas de tipos como os nazistas que odiaram um povo com base em teorias disparatadas que apontavam para superioridade e inferioridade de raças ou alguns cristãos que vêem nos judeus os assassinos de Cristo ou pessoas outras que não gostam de judeus por considerá-los arrogantes quando se auto intitulam os legítimos filhos de deus. Motivos não faltam, todo mundo conhece a história dos protocolos dos sábios de Sião, o documento que apresenta os judeus como conspiradores para dominar o mundo. Os protocolos são uma farsa, sobre isso não pode restar dúvida nenhuma; é inconteste sua fraudulência, há provas e mais provas. Muita gente, judeu ou não, já vasculhou todos os cacos no porão. Entre outras evidências, é sabido que a farsa se inspirou nos romances de Eugène Sue e O diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu de Maurice Joly, um satirista francês do século XIX, mas apesar disso muita gente ainda acredita – Ahmadinejad acredita – na legitimidade dos protocolos.

A visão estreita é ditada pela ignorância. Eu confesso que não gosto do fundamentalista judeu como não gosto do fundamentalista de qualquer outra religião. Acho que a religião mais afasta do que aproxima e sem dúvida concordo com certo músico de Liverpool – assassinado por um fanático. Mas talvez ainda não estejamos – nem todos estão – preparados para um mundo sem religião. Um mundo assim ainda é uma utopia como é utópica uma sociedade anarquista. Já imaginou uma sociedade que não precisasse de polícia?, mas é inegável que o homem caminha e grandes passos foram dados. Na Europa do século XII seria impensável um Estado Laico.

Não consigo evitar minha admiração pelos judeus, não necessariamente pelo sionista ou judeu que apóia a política de Israel quando o assunto é a Palestina tampouco por aqueles que se julgam os escolhidos. Escolhidos para quê? Para o extermínio nos campos de concentração? Para o exílio? Se deus existe e é pai de alguém, certamente não é dos judeus; para os judeus ele tem sido um padrasto e um padrasto muito severo. Quando penso nos judeus não é para o religioso que devoto minha admiração, mas para o homem ou mulher capazes de transformar sofrimento em vitória senão em arte. Penso em Kafka (que nem sabia que era judeu), em Primo Levi (sobrevivente de Auschwitz), Singer que fazia questão de escrever em iídiche) ou Philip Roth (ateu convicto), além de John Updike e Isaac Bábel (assassinado por Stálin)e Art Spiegelman e seu gibi sobre o holocausto ganhador do Pulitzer e Will Eisner, por que não? e os irmãos Coen e Woody Allen e muitos outros que a lista é extensa.

Uma vez eu segurava um livro e esperava minha vez numa fila para o autógrafo do autor. O livro é O último cabalista de Lisboa, e o autor, o judeu Richard Zimler, um tipo engraçado, alto, magro e de nariz incrivelmente longo. Uma pessoa na fila olhou para mim e disse o que pensava dos judeus: um povo incrível, ele disse, você sabia que proporcionalmente ninguém ganhou mais Nobel do que os judeus? Não, eu não sabia, mas não fiquei surpreso. Juro que não fiquei.