25 outubro 2010

medo

Medo. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Às vezes o medo não é justificado como no caso daquela menina e seu horror pelas borboletas. As asas da borboleta, o pó que se desprende das asas.

Há quem tenha medo de lagartixas, a pele fria do pequeno réptil na pele da gente causa alguma coisa. Gastura.

Há pessoa que é razoável até no medo que cultiva. De escuro não nem assombração que isso é medo que tem as crianças depois de assistirem a filmes de horror.

Um medo razoável é o medo que padecem as pessoas pragmáticas que no seu pragmatismo consideram a maioria dos medos pura frescura e invenção de analistas. Para elas o medo não é mistério e se explica (justifica) nos efeitos da desvalorização da moeda ou inflação, que é a mesma coisa ou na perda do emprego ou descoberta que o filho é gay.

Mas o fato é que o medo nem sempre é lógico. Por exemplo, quem tem medo do inferno é gente de bem, que vai à igreja e paga os impostos. Há o medo das alturas vertiginosas. E o medo é maior – das alturas – naquelas pessoas presas de uma vontade louca de pular. Os suicidas que encontraram a morte no beijo com o asfalto decerto morriam de medo de lugares altos; consumaram o projeto quando se tornou irresistível pular.

Para os medos se inventaram nomes. Estrambóticos, alguns. E ficam lá, no dicionário. Acrofobia é o nome da doença daqueles que se sentem atraídos pelo precipício. De claustrofobia sofrem aqueles que temem acordar na sepultura, ludibriados pela morte que os fazem morrer duas vezes. Uma doença também chamada de Lázaro.

Eu, por exemplo, morro de medo que meus sentidos não estejam funcionando direito, e fique comprometida minha apreensão da realidade. Foi assim que me senti esta semana, depois de assistir Tropa de Elite. Há filmes que nos deixam atônitos enquanto outros só servem para nos distrair enquanto comemos pipocas. Tropa de Elite além de ser um bom filme enquanto realização cinematográfica, é também do tipo que nos pega pela beca e nos sacode. Por isso, quando saí do cinema, fiquei meio aéreo e seriamente desconfiado de meu senso crítico, talvez embaçado e satisfeito demais com a normalidade.

20 outubro 2010

Carrero está bem

Entre os escritores do Brasil, e eu estou falando daqueles que são bem editados e já podem contar entre suas conquistas com prêmios literários etc, noto que há muito diletantismo. Talvez porque aqui literatura nunca foi encarada com seriedade, porque só é encarado com seriedade aquilo que gera lucro. Literatura não é pragmatismo, é coisa do espírito, e num mundo onde mesmo as coisas do espírito precisam gerar lucro – a doutrina da prosperidade que o diga – a literatura passa por excentricidade.

Talvez por isso e o fato de que a classe média brasileira não lê; os professore não lêem, nem os advogados que às vezes passam dez, vinte anos tentando passar no exame da ordem, tampouco os médicos, coitados, sem tempo para as coisas do espírito, ocupados que ficam a vida inteira com o ambicioso projeto de trabalhar muito para ficarem ricos, e a elite burra. Aliás, não se diz que o Brasil tem uma elite burra, pode-se incorrer em redundância. Já o povo, de todas as classes – o povo é uma classe? – faz um juízo diferente da literatura; pra ele literatura não é excentricidade ou perda de tempo, não é o mesmo juízo que faz a classe média ou elite. O povo não despreza a literatura, pelo contrário, sente por ela o mesmo que sentiam os católicos pela missa rezada em latim: não entendiam nada, mas por isso mesmo adivinhavam ali algo misterioso. O povo não lê não é porque o livro é caro. O livro é caro, decerto, mas existem espalhadas pelo país milhares de bibliotecas e salas de leitura que o presidente analfabeto criou. O povo não lê, na verdade, por duas razões: primeiro porque considera o livro algo misterioso e, como todos sabem, o povo é supersticioso, e segundo porque perdeu a inocência de tanto assistir televisão. A televisão é o veículo pelo qual o povo acompanha as modas inventadas pela classe média e a elite (em quem o povo se espelha), e entre tantas modas – algumas bem ousadas – não há nenhuma sobre o livro e seus mistérios.

Mas eu dizia que entre os escritores do Brasil há muito diletantismo, talvez pelas razões demonstradas, e outras, sem dúvida. Ser escritor no Brasil não é fácil. De todas as profissões, é, sem dúvida nenhuma, aquela que melhor representa o Mito de Sísifo. Por isso os escritores – desmotivados – não levam muito a sério o que fazem. Mas há exceções – sempre há exceções – no caso da literatura eu citaria Raimundo Carrero que neste momento, enquanto escrevo essas linhas, está na UTI, se recuperando de um AVC. Carrero é incansável, é um monstro e vem demonstrando nos últimos anos um ritmo de trabalho atípico, tão diferente da produção da maioria de seus colegas diletantes. Num país em que as editoras não estão nem aí se o escritor está ou não com um livro novo, num país que não existe a figura do agente literário, num país em que as editoras abandonam o escritor pelo caminho e mesmo o escritor importante, ganhador de prêmios e reconhecimento da crítica precisa implorar para seu livro ser editado e esperar um ano inteiro, às vezes mais, que o editor se resolva. Num país como este Carrero faz a diferença.

Ele começou no Movimento Armorial, mas abandonou aquele universo, sua inquietação é a daquele escritor em permanente busca por outras possibilidades. Ele costuma dizer que ainda não escreveu a obra pela qual deseja ser lembrado, talvez não, mas sua produção já conta com algumas obras primas. Mas não é o suficiente, não está satisfeito e quem ganha somos nós, seus leitores, vivendo todos os anos a felicidade antecipada de encontrar nas livrarias o livro que deixará satisfeito seu criador. Deus não está satisfeito com sua obra, Carrero compartilha dessa opinião. É preciso melhorar, é possível melhorar um parágrafo, uma página. Sempre. Ele sabe o que diz, disse a mim mais de uma vez sobre meus contos. Precisam melhorar! Sem dúvida. Carrero é obcecado pelo que faz, e dizer isso é dizer pouco, ele é o nosso Flaubert lá de Salgueiro para o Brasil, um dos pioneiros das oficinas de criação literária desmistificando o mito besta e romântico da inspiração como única prerrogativa do fazer literário. Viva o trabalho, diria Carrero, a labuta, o esforço que possibilita a transformação. Sem fanatismo não há boa literatura. Carrero é um fanático e é também um dos caras mais gentis que conheço, é daquele tipo de gente capaz de ligar pra você no meio da noite só pra perguntar se está tudo bem.

Está tudo bem sim. Estamos rezando por você, meu amigo, pedindo a Kafka que o proteja, a Henry Miller que não o desampare, a Zé Lins que não o deixe sozinho, pensando besteiras. Tudo vai correr bem, amanha vamos tomar aquela cerveja e dizer muita pilhéria.

13 outubro 2010

queixumes do carrasco

Louise Brouwn nasceu em 1978, foi o primeiro bebê proveta, depois nasceram muitos, fala-se em milhares. Este ano o Nobel de Medicina foi entregue a um dos responsáveis pela fertilização in vitro, o britânico Robert Edwards, de 85 anos. O Vaticano não gostou e quem nos deu a notícia de desagrado foi Ignácio Carrasco de Paula, presidente da Pontifícia Academia para a vida do Vaticano. Monsenhor Carrasco é porta-voz do Papa para assuntos relacionados à bioética, e disse que ficou perplexo com a escolha – que ele julgou fora de tempo – do novo laureado, lamentando o fato do prêmio ignorar as questões éticas levantadas pelo tratamento de fertilidade.

Monsenhor Carrasco diz que ficou perplexo.

Perplexo é como fica alguém quando sente uma forte indignação. Perplexos deveriam ficar todos os católicos – principalmente eles – com o anacronismo de uma Igreja que não se deu conta que a Idade Média ficou pra trás, quando seus representantes mais ilustres preconizavam que questionar a vontade de um soberano era o mesmo que questionar a Deus. Perplexos com uma Igreja e sua insistência em ser sempre o lado na discussão que não tem razão. A história mais clássica é a querela com Galileu, mas houve outras, antes e depois e em todas elas, a representante de Deus perdeu feio. É claro que naquela época o que ela não possuía em argumentos, esbanjava em poder, tanto é que outros opositores, também famosos, como Giordano Bruno, viraram churrasquinho. Mas esse tempo passou. Ninguém agora é queimado e a Igreja, com sua postura anacrônica apenas contribui para deixar ainda mais constrangido o próprio católico, coitado, que já tem de fazer verdadeiros malabarismos mentais – que Nietzsche chamava improbidade intelectual – e buscar na vida dos santos exemplos de cristandade já que muitos sacerdotes não servem de modelo (acho que nunca serviram) e estão envolvidos até o pescoço com a Justiça e o pagamento de indenizações a vítimas de abuso sexual. Mas o Estado é laico, Monsenhor Carrasco pode dizer o que quiser.

Estamos todos tranquilos, o carrasco não vai levar ninguém ao patíbulo, no máximo vai encontrar alguns simpáticos à sua causa, mas a maioria vai rir, achar engraçado e no final ninguém vai dar a menor atenção ao que o porta voz do vaticano tem a dizer sobre fertilização, manipulação genética, células-tronco embrionárias, clonagem ou uso contraceptivo da camisinha.

E tudo isso porque no Estado Laico – uma de nossas maiores conquistas – o carrasco não tem vez. Há severas sanções proibitivas sobre o uso indevido de abrir alçapões ou lidar com mecanismos de guilhotina. Também caçaram o porte do machado e lhe arrancaram o capuz da cabeça, é por isso que o encontramos nesse estado: fazendo muchocho e beicinho.

03 outubro 2010

narciso

O livro mais importante na vida de um leitor é aquele em que ele se reconhece. Falo de mim, de você. Muito tempo depois lendo e relendo aquele livro somos capazes de afirmar: ora, mas não havia nada ali que eu já não soubesse! De fato, há nessa afirmação uma confissão narcisista.

É claro que admiramos alguns livros por aquilo que eles foram capazes de fazer pela literatura, por exemplo, renovando a forma quando ela parecia impossível de comunicar nossas novas experiências. A esses livros devemos o renovado sentido do novo. Para os responsáveis, tiramos o chapéu. Kafka, Joyce ou Guimarães Rosa são ótimos exemplos. Também há os livros que nos despertam das letargias, os livros que causam perplexidades, aqueles que nos fazem desacreditar do gênero humano ou amá-lo incondicionalmente. Acho que todo mundo já se perguntou um dia: estou mais feliz depois da leitura deste livro? Provavelmente não, mas entendemos que foi necessário.

Mas não é desses livros – muito embora a química não os exclua – que eu me refiro. Não necessariamente dos renovadores da forma ou revolucionários ou aqueles que nos comunicam uma tristeza iniludível, mas daqueles livros que de cara nos pegam de jeito porque as metafísicas cruciais ali desenvolvidas são as mesmas que nos inquietaram a vida inteira, sutilezas que pensávamos só a nós pertencer, reflexos de nossas idiossincrasias. Refiro-me aos saudosistas – de uma saudade que também é nossa, é minha – que utilizando o recurso insipiente da linguagem e não uma sofisticada máquina do tempo, são capazes de recriar aquela época que foi nossa embora a idade nos desminta (essa contingência tirânica que nos limita e angustia e no final nos livra de todo sofrimento), falo dos bruxos, químicos e sinestésicos livros criadores de atmosferas. Uma atmosfera que eu – leitor – idealizo, mas não tenho consciência disso.

Eu conheci um senhor, alguns anos atrás, dono de uma clínica, em Recife. Naquela altura da vida ele apenas supervisionava o trabalho dos filhos, estava aposentado ou algo assim, dispunha de tempo, portanto, me disse ele, para ler e reler um livro. Fiquei surpreso quando ele me disse o nome, eu julgava aquele livro um dos exemplos de livros lidos apenas por escritores. Em Busca do Tempo Perdido é feito da matéria da minha vida – ele disse. Nenhuma biografia da minha vida poderia ser mais fiel aos meus sentimentos, nenhuma recomporia melhor a atmosfera da minha infância.

Claro estar que o mesmo livro, o livro de quem sou devoto leitor, pode não ser o seu, provavelmente não é, mas isso não importa, não estamos julgando méritos, não é tanto o livro, mas o quanto de alma gêmea ele é pra você. Pra mim. Não estamos falando de regras – que sirvam para todos – não é o caso de leis ou subordinações nem verdades absolutas. Provavelmente não há verdades absolutas, não nas coisas grandes, talvez nas pequenas. Na verdade eu estou falando de flerte, namoro.

Dizem os psicólogos de plantão que quando nos apaixonamos, é por nós que o fazemos, o outro é só uma projeção de nós mesmos, um ente que só existe a medida que alimentamos sua natureza feita da essência do ser por trás de nosso olhar. Algo parecido acontece com os livros de que estou falando, aqueles que foram feitos – intencionalmente ou não – da matéria de nosso ser, de meu ser. (É essa minha impressão mais viva) São livros e mais livros adquiridos ao longo de muitos anos e que traduzem o mais ousado projeto de compor uma biblioteca pessoal. Os livros ali distribuídos são iguais num aspecto: parecem tentativas de compreensão da minha alma – a alma do leitor que sou; que é você quando a experiência é sua, são formulações – muitas delas disparatadas – de hipóteses sobre a minha existência, meu lugar no mundo, meu lugar na vida do outro, sobre de que é feito meu sangue ou qual o tamanho do meu coração. Enamoramos-nos desses livros, e eu não sei se eles nos ajudam a enxergar além do nevoeiro ou se contribuem ainda mais com a cerração. Desconfio até que esta questão não tem a menor relevância.