29 junho 2009

Mito

A notícia da morte de Michael Jackson me foi dada, claro, pela televisão – na verdade na sexta. Quinta-feira foi gasta na biblioteca, onde fiquei enfurnado, lendo um livro de ensaios do Umberto Eco, aliás, melhor narrador do que teórico. Entre os ensaios, um causou-me certo desconforto: Os aforismos de Oscar Wilde.

Então ligo a televisão e me junto aos milhões de telespectadores que se recusam a acreditar que alguma coisa do mundo que conheceram e ao qual se julgam pertencer, desmoronou em parte, teve um capítulo encerrado e o que parecia imutável, imune ao efêmero, revelou-se no final frágil, mortal. Com o anúncio da morte do ídolo, amplamente explorado pela mídia espetaculosa, vídeos caseiros, clips e fotografias tentam compor fragmentariamente a vida que levou o artista – pelo menos aquela parte captada pelas câmeras, talvez menos sujeita aos insultos. As retrospectivas mostram-no ainda menino e negro, muito antes da louca obsessão de permanecer jovem e belo.

Tanto o escritor irlandês quanto o artista pop foram acusados de imoralidade e foi o herói de Wilde, Dorian Gray, assim como M.J., também um obcecado por beleza e juventude.

Li Dorian Gray mais de uma vez. Na primeira, ainda moço, fascinou-me os aforismos e tanto foi o fascínio que decorei a maior parte deles. Recitava-os sempre que a ocasião e o vinho ajudavam. Nunca escondi a autoria daquelas frases mais preocupadas com a elegância e beleza do que em preconizar verdades. O nome do escritor soava tão sofisticado quanto suas palavras.

Confesso que preciso ler de novo o ensaio de Eco. Primeiro ele diz que Wilde é uma espécie de escritor fátuo e disso entenda-se oco mais do que pretensioso. Mas é o próprio Eco logo depois quem vem em defesa de Wilde afirmando que se o aforismo é fátuo, ele – o romancista – coloca-o na boca de personagem capaz de fatuidade. E, espanto-me eu; se a frase é oca e está sendo dito por personagem que se enquadra na mesma categoria de adjetivo, onde está o erro do romancista?

Depois diz que O Retrato é uma imitação de certa novela de Balzac e uma ampla cópia de À Rebours de Huysmans e não pára por aí, acusa-o também de fazer versões de Baudelaire. Em dado momento me senti sofrendo pela morte de dois ídolos. Enquanto pairava a dúvida sobre onde enterrar o corpo de M.J., Umberto Eco desferia punhaladas no fantasma de Oscar Wilde. E não foi o esteta do dandismo que vi diante de mim, mas o condenado a trabalhos forçados na prisão por “cometer atos imorais com diversos rapazes”.

Entre os anúncios de preparação do funeral estava sempre alguém disposto em nos lembrar das acusações de pedofilia imputadas a M.J.

Às vezes me sinto como um homem de fé que acredita que certas verdades não contribuem para nada senão em tornar o mundo mais feio. Nem sempre mitificar é fazer da história um monte de mentiras. No final das contas, que é a verdade, perguntou Pilatos para quem em pouco tempo se tornaria um mito.

27 junho 2009

Sábado

O romance de Machado de Assis é considerado Realista mais por uma questão cronológica do que em razão de sua fidelidade ao estilo de época do século XIX. Sua habilidade de deixar incrédulo o leitor a respeito das reais intenções do narrador deu-lhe fama de escritor que antecipou – no Brasil – o romance moderno. De fato é visível a preocupação do criador de Capitu com o não dito e a ambigüidade. Machado de Assis não é citado por Borges como é Eça de Queirós. Pra mim isso só encontra explicação na pouca familiaridade do escritor argentino com autores de língua portuguesa, mais especificamente do Brasil. Há muito de Machado de Assis na obra de Borges. São autores com preocupações parecidas. Poderia ser de Machado de Assis a recomendação que deve o narrador contar uma história como se não estivesse totalmente inteirado dos fatos. Machado é sem dúvida um escritor que se enquadra perfeitamente na poética da obra aberta de Umberto Eco.

Entre muitos escritores, esse é o caminho para se produzir boa literatura.

Machado de Assis é como aquele atleta que não teve ainda seu recorde quebrado. Ele subverteu o século XIX e antecipou o século XX. Isso, entretanto, não quer dizer que o Bruxo tenha feito algo original. Outros escritores, antes dele, como Laurence Sterne, fizeram o mesmo. Acho que o grande mérito de Machado está no fato de se apoderar de uma técnica e nela por sua marca.

Estou lendo Sábado, romance de Ian McEwan sobre a piração do povo inglês e americano depois do Onze de Setembro. Ao longo das 330 páginas, acompanhamos um dia – o sábado – na vida de Henry Perowne. Neurocirurgião de um importante hospital de Londres. Ele é casado com Rosalind, uma destacada advogada. Seu sogro é um poeta indicado ao Nobel e seus dois filhos, Daisy e Theo são o máximo em matéria de filhos; ela uma poeta promissora, ele um astro pop. A única mácula na vida cor de rosa de Henry é sua mãe, internada num abrigo para velhos, com algum tipo de degeneração neurológica em estado bem avançado, mas o desconforto que ele sente ao visitar a mãe é coisa passageira, basta dirigir seu carrão pelas ruas de Londres e logo a mãe e tudo aquilo que ela representa de incômodo ficam para trás, no abrigo, sob os cuidados de uma enfermeira que o trata de doutor e por causa de sua condição de médico, merece cuidados especiais extensivos à sua mãe, a paciente.

A primeira coisa que me chama a atenção no romance é que McEwan, ao contrário de Machado de Assis e seu narrador escorregadio, Borges e o não dito, Umberto Eco e sua ambigüidade – que eu estou convencido de que são elementos fundamentais para uma escritura satisfatória –, é que ele parece ir na contramão. O discurso é na terceira pessoa e o narrador onisciente que tudo sabe e tudo vê não deixa escapar nada e debulha para o leitor o fundo do âmago de Henry e nos revela todos os pormenores de seus pensamentos, medos ou frustrações. Não precisamos supor nada. Tudo está esclarecido, terminamos o romance com a sensação de que conhecemos o personagem há pelo menos trinta anos.

Ian McEwan acompanhou a rotina de um neurocirurgião de verdade durante dois anos. Os detalhes que nos fornece sobre a rotina de tal profissional o ajudaram a compor seu personagem e deu-lhe tal verossimilhança capaz de deixar satisfeito qualquer sociólogo. Sobre o médico e sua relação com o hospital – ele descreve o lixeiro onde são depositadas as roupas cirúrgicas descartáveis com riqueza de detalhes –, ficamos familiarizados com tudo, desde a terminologia empregada no trato com doenças, remédios, procedimentos e equipamentos cirúrgicos a hierarquia entre médicos e residentes.

Parece que estamos lendo um escritor do século XIX sem as preocupações de Machado de Assis, um Eça de Queirós, capaz de compor um quadro sobre o qual nenhuma suspeita paira. Um grande romance de um realista do século XXI.

22 junho 2009

Junichiro não é Machado

Junichiro não é Machado de Assis. Não tem a mesma habilidade de fazer com que o leitor se sinta pisando em terreno movediço. No romance A Chave há dois diários, escritos por personagens influenciados pelo mundo dos sentidos. Em dado momento é coerente desconfiar da sanidade dos autores. Mas as desconfianças nascidas da verdadeira autenticidade dos escritos não aparecem senão no final do livro. Aí descobrimos que Ikuko mentia quando afirmava que insuflou ciúmes ao marido para fazê-lo esquecer-se do medo da morte.

Na obra machadiana o leitor é posto à prova. Depende dele aceitar ou não. É sua argúcia que determinará o quanto participará ou não da construção do texto. Isto, entretanto, não quer dizer tudo. O Bruxo nos lança um desafio, como o da esfinge, mas ao contrário de Épido, não matamos a charada e somos devorados. É assim que nos sentimos diante do julgamento do adultério. O processo ao qual nos submetemos como juízes do verdadeiro caráter de Capitu ou a loucura de Bentinho revela-se no final uma difícil probabilidade matemática.

Junichiro não vai tão longe, mas não há como negar a complexidade das personagens. Se a ambigüidade nos acompanha ao longo da narrativa de Machado, em Junichiro ela é só uma silhueta que aos poucos vai tomando forma e só aparece no final. No final o autor nos deixa em dúvida sobre a real natureza do relacionamento de Kimura e Toshiko. Para além da trama de assassinato do marido perpetrado por Ikuko, haveria outra trama, não anunciada, do jovem casal? Por que foi o relacionamento adúltero da mãe facilitado pela filha? Estaria sendo Ikuko vítima da vontade de Toshiko e Kimura que secretamente contribuíram para aquele desfecho?

Nas últimas páginas do livro, Junichiro me lembrou Machado de Assis – por isso a comparação – senti de repente o terreno movediço, uma característica sem dúvida do romance moderno, praticada - e ainda não superada - pelo Machado de Assis nos últimos suspiros do século XIX.

21 junho 2009

Da tradução

Segundo Borges, o que fez o Dom Quixote subsistir no tempo não foi o estilo do autor, pois não há nenhum. Mas tão somente seu aspecto psicológico. De fato ninguém precisa fazer uma leitura mais atenta do livro do Cavaleiro da Triste Figura para perceber ali desorganização, capítulos inacabados, parágrafos intermináveis, desencontros etc. A impressão que se tem é que Cervantes jamais releu seu romance.

Senão toda, mas alguma razão tem o escritor argentino. De fato se é o estilo composto em grande parte pelo manejo com as palavras, possível somente com a utilização da Língua de que se está valendo e que uma tradução, mesmo a melhor de todas, não reproduz o texto original – porque uma língua não encontra correspondência fiel na outra – e que desta forma perdem-se justamente os artifícios verbais do estilista, como explicar que uma obra sobreviva a todo tipo de tradução descuidada? Em seu livro Borges cita o poeta Heine que nunca leu Dom Quixote em espanhol, mas o celebrou para sempre.

Alguns escritores não acreditam mais no estilo. Raimundo Carrero é um deles, costuma afirmar que é a personagem quem tem estilo. Acho que o conceito de estilo ficou abstrato. O fato é que Borges me deixou mais à vontade com as traduções. Tanto é que leio autores japoneses despreocupado com a correspondência das línguas. É verdade que estou atento para as boas edições, e sei que apesar do conforto que as palavras de Borges representam para quem fala uma só língua, é melhor ler uma boa tradução do que uma tradução qualquer.

17 junho 2009

Do erótico

Talvez meu comentário anterior sobre A Chave tenha provocado no leitor uma falsa idéia do romance. Que o livro é erótico, não há como negar, mas não o tipo de erotismo que emana das cenas de sexo e sua descrição rica em detalhes. Nesse sentido não há erotismo. O mais perto disso é acompanhar o marido, com a ajuda de uma lâmpada fluorescente, examinando com ímpeto de voyeur, o corpo nu da esposa que finge dormir. Há certas particularidades na anatomia da mulher, como o pé e a pele macia que o recobre, capaz de provocar verdadeiro frenesi no homem segurando a lâmpada. Eu diria que o erotismo do livro emana muito mais do entusiasmo do voyeur em presença do objeto de sua adoração do que da descrição desse objeto. É o entusiasmo dele que nos contamina e nos faz sentir a beleza do objeto de desejo mesmo diante de uma quase ausência de detalhes na sua descrição. Por um instante somos a personagem e partilhamos suas sensações. Isso ocorre sem que nos apercebamos. Inconscientemente.

Tanto no diário dela quanto no dele, as informações que envolvem a ambos são de ordem prosaica. É ela que tem que fazer umas compras, arrumar o escritório ou passar na casa de banhos e depois se encontrar com o amante. Do encontro nada sabemos, apenas imaginamos. Quando o professor
envia a Kimura os filmes contendo as imagens de sua esposa nua, nós não somos informados sobre como reagiu o rapaz, apenas temos uma vaga idéia quando muitas páginas depois ele é referido por Ikuko ou por seu marido a propósito de uma coisa qualquer, absolutamente fora daquele contexto. É a arte do não dito, que parece ser regra nas grandes obras de ficção, tanto o conto quanto o romance.

Já nas últimas páginas do romance, enquanto o marido, vítima de um derrame, está convalescente no quarto, a mulher, para descrever uma cena de encontro com o amante limita-se a umas poucas palavras: “Às onze horas, ouço passos no jardim...” O resto fica por conta do leitor e sua natureza voyeur.

15 junho 2009

A Chave

A Cia das Letras vem desde 2000 publicando as obras traduzidas para o português de Junichiro Tanizaki, provavelmente o escritor mais popular do Japão.

Surpreende-me o tratamento que o autor confere às personagens. Dir-se-ia um Marquês de Sade japonês. Eles, os personagens, estão sempre vivendo triângulos amorosos marcados pelo sexo. As personagens têm pudor – algumas mulheres não se mostram nuas para seus maridos – há vergonha e é quase o mesmo o conceito de licenciosidade dos ocidentais, mas não há influência do Cristianismo. O sexo pode ser depravado, licencioso e pode causar vergonha, mas não é pecaminoso e sua prática – mesmo no adultério, por exemplo – não tem o poder de condenar a alma de quem o pratica.

Junichiro Tanizaki foi um desses escritores japoneses do começo do século XX muito influenciado pelo mundo ocidental – embora mais tarde se volte para as tradições e o Japão feudal. Há de se supor, portanto, que tenha lido Freud. Em seus livros o sexo é o tema a partir do qual se inquieta com o humano.

Em A Chave, um homem de 56 anos e sua esposa de 45 escreve – cada um a seu turno – um diário que é compartilhado com o leitor. Espécie de romance epistolar de duas vozes. No diário cada um apresenta suas impressões do casamento. Não precisa dizer que a tônica é o sexo. Nenhum deles, embora corroídos pela suspeita (a chave do título é a chave que abre a gaveta em que fica guardado o diário dele) lê o diário um do outro. Sadismo e jogos sensuais a que se submetem, arriscando a própria saúde e escandalizando a filha, fazem de fato lembrar o Marquês.

O casal recebe em sua casa, reiteradas visitas de Kimura, jovem que nos é apresentado como pretendente de Toshiko, a filha. Tal romance, entretanto, não é consumado e o jovem casal passa apenas por amigos. Os pais da jovem estão casados há 30 anos e entre os dois acumulou-se ao longo dos anos uma lista de desagrados, embora ainda se amem – o marido principalmente. Os encontros são regados a conhaque – que Ikuko, a esposa, bebe até se embriagar. Bêbada ela deixa a sala, desnuda-se e desmaia na banheira, o que é acudida pelo marido, o jovem desconcertado e a filha que tem a mãe na conta de muito virtuosa. Tiram-na da banheira e o jovem ajuda a pai e filha enxugar e vestir a senhora daquela casa. O ritual repete-se e apesar de bêbada, Ikuko finge-se desmaiada. O marido desconfia do desmaio e ao contrário do que se poderia esperar, excita-se com o jogo da esposa. Daí por diante resolve participar efetivamente – não é passivo – seu toque pessoal está no fetiche de fotografar o corpo nu da mulher e entregar os filmes para o embasbacado Kimura revelar.

O perigo de estar instigando o adultério da esposa – motivo de dor provocada pelo ciúme – não é suficiente para fazê-lo parar. Para atender ao desejo de Ikuko aplica em si mesmo injeções de quinhentas unidades de hormônio pituitário a cada três ou quatro dias e faz isso contra as recomendações medicas que o alertam para sua pressão altíssima. Nada mais me atrai a não ser o prazer corporal, são suas palavras num trecho do livro. E pelo prazer está disposto a tudo – ela também – e tudo parece justificado apesar do preço que precisarão pagar.

11 junho 2009

Ainda Kawabata

Outro dia um professor explicava na classe que toda literatura é simbolista e que o Simbolismo apenas pretendeu exacerbar tal característica. De fato. No livro “A Casa das Belas Adormecidas” há passagens dignas dessa nota.

O mais interessante, embora óbvio, é que se reconhece um bom escritor pela habilidade com que trata o símbolo. Às vezes a comparação ou metáfora parece forçada. Não seria esse o caso numa das passagens do livro em que o autor compara a jovem nua e adormecida com uma espécie de Buda? Não soaria grosseiro comparar um ícone – da Virgem Maria, por exemplo – com uma jovem nua (uma prostituta que não sacia o desejo da carne do homem, mas que é consciente de seu papel como objeto de sedução) intencionalmente adormecida para servir de “brinquedo” para velhos licenciosos?

Tudo isso seria verdade se não fosse a habilidade do artista. Nesse sentido o melhor exemplo é, talvez, o de Bernini. O Êxtase de Santa Teresa, mesmo para padrecos vivendo em meados dos anos 1600 – ainda a época da Santa Inquisição – não pareceu imoral embora seja indo e vindo o retrato fiel de uma mulher se contorcendo de gozo. Todos tiveram que calar sua hipocrisia diante da manifestação do belo que deve todo seu êxito a habilidade do artista. Em Kawabata a jovem nua podia ser muito bem o Buda diante do qual os velhos se ajoelham e choram “pelo medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida.”

A jovem nua, como uma santa de gesso por quem os fieis nutrem fé e paixão tem o poder de fazer aqueles homens, embora velhos, mas que são homens de poder e posição, derramar lágrimas e revelarem-se sensíveis e frágeis, destituídos das máscaras que são obrigados a sustentar.

10 junho 2009

Similaridade

O fragmento de texto selecionado abaixo foi extraído por mim de um artigo sobre “Meu nome é Legião” do Antônio Lobo Antunes. Não me lembro o nome do autor do artigo. É sobre o escritor português, mas caracteriza perfeitamente o romance de Raimundo Carrero. Talvez não aqueles que pertencem ou nasceram influenciados pelo Movimento Armorial, mas os de feição urbana, entre os quais merece destaque “Somos pedras que se consomem”.

" (...) o autor fabrica os personagens na agenda informativa do dia, recorta-os das páginas do "Correio da Manhã", decalca-os do violento alinhamento dos noticiários da TVI, descobre-os na batalha que diariamente está travada nos bairros degradados da periferia."

Carrero encontra suas personagens nas páginas de jornal, principalmente nos cadernos policias. Há ali uma verdadeira galeria de tipos, diria ele. Mas talvez o mesmo faça Rubem Fonseca, Marçal Aquino e tantos outros que dão especial enfoque ao viver nos grandes centros urbanos. Reo-realismo? Talvez, mas sem incorrer no anacronismo do estilo de época.

09 junho 2009

Elogio da delicadeza

Algo que me chama a atenção em A Casa das Belas Adormecidas, além do já referido por mim na postagem anterior, decerto uma característica da boa literatura do século XX, (a tragédia do homem comum e seus paradigmas que traduzem o insignificante e não o heróico no seu cotidiano) é a escritura do autor. Em Kawabata, chama-me a atenção a suave descrição de ambientes e paisagens, bem como os adjetivos utilizados para dar relevo aos corpos mergulhados no sono das belas adormecidas. É claro que falo da obra traduzida, que é como a conheci.

“olhando para o teto, viu duas aberturas semelhantes a clarabóias, de onde a luz das lâmpadas elétricas era projetada através da tela de papel Japão. Sem dúvida, uma iluminação como aquela não só era ideal para o veludo carmesim, mas também realçava melhor a tez da garota refletida no vermelho do tecido, dando-lhe a beleza irreal de um espectro.”

(...) os ombros dela se levantaram de leve, realçando a forma arredondada e juvenil de seus seios. E, ao puxar o cobertor sobre os ombros dela, Eguchi envolveu docemente as formas arredondadas com a palma de sua mão. Seus lábios deslizaram do dorso da mão até o braço. O cheiro dos ombros, da nuca da garota, o seduzia. Os ombros, bem como a parte inferior das costas, se contraíram, mas logo se afrouxaram e a pele pareceu colar-se no corpo do velho.”

Se de um lado acompanhamos um velho metido em si mesmo, motivado pela situação insólita que se vê representando, deitado ao lado de uma jovem semimorta. Um velho e as sobras de si mesmo, aquilo em que se transformou ou a vida o reduziu, do outro percebemos a suavidade com que o autor, a exemplo de um pintor que escolhe as cores mais delicadas, vai compondo os cenários e descrevendo as jovens – a maioria delas virgens, puras e tão inacessíveis para o velho quanto eram as musas para os poetas românticos. Este contraste – que a meu ver parece intencional, confere tal ênfase à solidão de Eguchi que a sentimos latente dentro de nós.

08 junho 2009

A casa das belas adormecidas


Na cama a menina dorme seu sono letárgico. O velho Eguchi acende um cigarro e sente angustia e vazio. Lembra-se de um poema que ouviu e jamais esqueceu. “O que a noite me reserva são os sapos, os cães negros e os corpos afogados.” Os versos que falam da noite, traduzem seu sentimento sobre a velhice.

Yasunari Kawabata escreveu um romance que se passa quase todo dentro de um quarto. O monólogo de um velho diante do corpo nu de uma jovem que ele não conhece, impossibilitado pelas normas da “casa” de nunca com ela se relacionar sob pena de botar tudo a perder e fazer desaparecer todo o mistério que o seduz e causa sofrimento. O tempo narrativo linear é apenas interrompido de vez em quando para dá lugar ao fluxo de consciência da personagem que volta no tempo e relembra os momentos de vida ao lado das filhas, amante e esposa. Nesses momentos a sensualidade cede lugar a sentimentos confusos que o impele a rever a vida que levou. Mas a tônica maior, acho eu, é o desespero em face da impossibilidade, o sentimento da impotência e a dor de envelhecer.

Apesar de não ser ainda um “cliente de total confiança”. Mas um homem com alguma virilidade, embora não muito longe da decadência da velhice, o velho Eguchi sente que “o desespero de envelhecer se tornava insuportável
.” Estar diante do mais precioso objeto de desejo potencializa esse sofrimento que é procurado por ele numa insensatez ou ânsia de purgação.

Parece que volto a comentar “O homem comum” de Roth, porque este livro, como o outro, também é o relato de um ser dilacerado, em luta contra os fantasmas e obsessões. O monólogo de Eguchi revela suas fragilidades e o reduz a uma parcela mínima do homem que um dia foi.

07 junho 2009

O crânio de Yorick

Quando o homem comum vai ao cemitério fazer sua última visita ao túmulo judeu de seus pais – embora não saiba que seja a última, encontra o coveiro. Tal encontro me fez lembrar da cena I do Quinto Ato de Hamlet. Nela o perturbado príncipe se encontra com o coveiro e se espanta diante do horror de segurar nas mãos o crânio de Yorick, o bobo da corte de seu pai, que o fazia rir e o carregava nas costas. Que fizeram de teus sarcasmos, de tuas cabriolas e canções, pergunta o príncipe. O coveiro é bem humorado, está cantando quando aparecem Hamlet e Horácio e não reconhece o príncipe. Este lhe faz perguntas. Quanto tempo é coveiro e quanto tempo pode ficar um homem enterrado antes de apodrecer?

Causa indignação a Hamlet a indiferença ou naturalidade do coveiro diante do horror da morte.

O coveiro da novela de Roth é negro, tem 58 anos, é ainda forte e robusto e há 34 anos – o coveiro de Hamlet há 30 – cava buracos tão lisos no fundo que daria para fazer uma cama ali. Como o da peça este também comenta sobre alguns mortos enterrados por ele, como o cara que lutou na Segunda Guerra Mundial e o garoto de 17 anos, morto num trágico acidente de carro. Fala dessas coisas como se comentasse a previsão meteorológica para domingo.

Um dia nublado, com pancadas de chuva à tarde.

Assim como Hamlet, o personagem de Roth não compactua com o coveiro da mesma naturalidade com que este encara a morte. Nele há indignação e revolta e um forte sentimento de inconformismo por saber-se impotente diante do inevitável.

Há mais de uma leitura possível no livro, porém aquela que mais me tocou é a história de um homem que sabe que vai morrer, senão hoje, mas um dia, talvez mais cedo do que seria da sua escolha e que não há nada a fazer, senão revoltar-se. Mais do que isso, é a história de um homem que não tem nome porque representa a todos nós, e que apesar de todos os erros e frustrações que acumulou pelo caminho, continua preso à vida de tal modo a considerar a morte um equívoco, o maior dos absurdos, aquilo que atenta contra sua natureza.

06 junho 2009

Homem Comum

É muito triste quando a ilusão perde o poder sobre nós. Quando isso acontece, e um dia acontece, é inexorável, o suicídio passa a nos atrair como coisa razoável, e se não são proporcionais, é porque existe muita gente covarde no mundo. Covarde mesmo quando não há nada a perder. Há um ditado que diz que Deus dá o jeito. Será? Pra mim, que não acredito em Deus, ou pelo menos num Deus que tem para nós um projeto além túmulo, isso não serve de consolo. 

Existir é doloroso, diria Sileno. Existir não foi uma escolha. De repente nos descobrimos num mundo que nos acolheu como pôde e nos indicou as alternativas de sobrevivência. Sobrevivemos, ou assim nos parece. Deram-nos obrigações, concederam-nos alguns direitos e assumimos o nosso papel no mundo, bem ou mal. Na verdade nos deixamos arrastar pela onda. E tudo o que fizemos – dentro das alternativas viáveis – teve sobre nós um efeito anestésico. Entre os animais somos os únicos conscientes da morte, e para ter de lidar com isso, criamos estratagemas. Talvez a religião seja o mais famoso deles. Mas chega um momento crucial quando a ilusão perde o poder sobre nós, e nada mais que fazemos para nos “distrair” tem efeito alucinatório. O ópio perde suas propriedades e depois da comédia representada, o teatro está vazio, e restamos nós e o absurdo que encarnamos. 

O personagem de O homem Comum, última novela de Philip Roth, e de quem não sabemos o nome, divisa este momento. Além da morte, as coisas que ficaram para trás, aquilo em que gostaríamos de ter uma nova oportunidade – talvez ainda um pouco de ilusão? – para tentar de novo, mas é tarde, o passado é imutável. Só resta lamentar as coisas que poderiam ser e não foram. Todo o esforço que não foi suficiente. A morte – certamente a personagem central da novela – tem o poder de potencializar tais frustrações. No início do livro a personagem está sendo sepultada pelos familiares, quando ocorre o retrocesso no tempo, o autor já tem nos alertado sobre o desfecho: onde tudo vai acabar, e então fazemos a leitura incomodados com a idéia de que somos um projeto fadado ao mais completo fracasso. Os casamentos sucessivos, as mulheres enganadas por ele, o ódio de dois filhos e as internações em decorrência de uma saúde debilitada são os reflexos de uma trajetória para lugar nenhum.  

Seu pai ganhava a vida no ramo dos diamantes. Há entre o homem e o diamante uma grande diferença. O diamante não é perecível. O homem sim, nós não somos capazes de escapar da vicissitude da temporalidade. É sobre isso a novela de Roth, mas não apenas o perecer do corpo, mas do mundo ao nosso redor, nossos valores mais caros e nossa esperança.  

02 junho 2009

Simenon

Na última semana me deu vontade de ler um bom romance policial e aí me decidi pelo Simenon. Comecei com O Caso Saint-Fiacre, e acompanhei Maigret de volta à sua cidade natal. Nela o Comissário reencontra personagens antes inacessíveis, quando ele era garoto pobre, filho do administrador do castelo.

A condessa está morta, mas antes disso, ela e o castelo e a nobreza que um dia representou, entraram em franca decadência. Seu filho, o herdeiro de coisa nenhuma, vadio e por aqui de dívidas, é suspeito, bem como o secretário da condessa com quem ela mantinha relações inadequadas – causa de indignação e revolta dos mais pudicos habitantes do vilarejo.

O mundo que Maigret conheceu e do qual provavelmente ainda conservava alguma impressão desde quando deixou aqueles cafundós, desaba. Os últimos vestígios sobreviveram até sua vinda, quando deixou seus afazeres em Paris e fez aquela viagem que é também uma viagem sentimental, embora às avessas; desmistificadora.

É trazido ali motivado pelo trabalho de detetive. Precisa solucionar um crime que ainda não aconteceu. Um crime anunciado. Aliás, algo sem muito sentido, que não fica nem um pouco esclarecido já que o assassino não é um serial killer narcisista e tarado por ibope. Tal excentricidade será sua perdição. Não fosse ela teríamos o crime perfeito em que um assassino sequer suja as mãos, senão de tinta. A vítima cai fulminada por um ataque do coração depois de ler uma notícia prestidigitada, intencionalmente deixada ao seu alcance.

O assombro de Maigret diante de seu mundo de infância que desmoronou é a tônica maior do livro. O caso do assassinato fica em segundo plano – nem é solucionado por ele – Simenon não corrigiu as impropriedades nem ligou importância para um detalhe e outro inverossímil, e nele, assim como em Cervantes, tais “descuidos” não foram capazes de macular o romance que sai incólume, possibilitando-nos mais uma leitura da alma humana.