Então ligo a televisão e me junto aos milhões de telespectadores que se recusam a acreditar que alguma coisa do mundo que conheceram e ao qual se julgam pertencer, desmoronou em parte, teve um capítulo encerrado e o que parecia imutável, imune ao efêmero, revelou-se no final frágil, mortal. Com o anúncio da morte do ídolo, amplamente explorado pela mídia espetaculosa, vídeos caseiros, clips e fotografias tentam compor fragmentariamente a vida que levou o artista – pelo menos aquela parte captada pelas câmeras, talvez menos sujeita aos insultos. As retrospectivas mostram-no ainda menino e negro, muito antes da louca obsessão de permanecer jovem e belo.
Tanto o escritor irlandês quanto o artista pop foram acusados de imoralidade e foi o herói de Wilde, Dorian Gray, assim como M.J., também um obcecado por beleza e juventude.
Li Dorian Gray mais de uma vez. Na primeira, ainda moço, fascinou-me os aforismos e tanto foi o fascínio que decorei a maior parte deles. Recitava-os sempre que a ocasião e o vinho ajudavam. Nunca escondi a autoria daquelas frases mais preocupadas com a elegância e beleza do que em preconizar verdades. O nome do escritor soava tão sofisticado quanto suas palavras.
Confesso que preciso ler de novo o ensaio de Eco. Primeiro ele diz que Wilde é uma espécie de escritor fátuo e disso entenda-se oco mais do que pretensioso. Mas é o próprio Eco logo depois quem vem em defesa de Wilde afirmando que se o aforismo é fátuo, ele – o romancista – coloca-o na boca de personagem capaz de fatuidade. E, espanto-me eu; se a frase é oca e está sendo dito por personagem que se enquadra na mesma categoria de adjetivo, onde está o erro do romancista?
Depois diz que O Retrato é uma imitação de certa novela de Balzac e uma ampla cópia de À Rebours de Huysmans e não pára por aí, acusa-o também de fazer versões de Baudelaire. Em dado momento me senti sofrendo pela morte de dois ídolos. Enquanto pairava a dúvida sobre onde enterrar o corpo de M.J., Umberto Eco desferia punhaladas no fantasma de Oscar Wilde. E não foi o esteta do dandismo que vi diante de mim, mas o condenado a trabalhos forçados na prisão por “cometer atos imorais com diversos rapazes”.
Entre os anúncios de preparação do funeral estava sempre alguém disposto em nos lembrar das acusações de pedofilia imputadas a M.J.
Às vezes me sinto como um homem de fé que acredita que certas verdades não contribuem para nada senão em tornar o mundo mais feio. Nem sempre mitificar é fazer da história um monte de mentiras. No final das contas, que é a verdade, perguntou Pilatos para quem em pouco tempo se tornaria um mito.