26 abril 2009

Max Brod

Num artigo, Harold Bloom, o crítico americano, vaticinou que o jovem leitor que começar suas leituras pelo Harry Potter não evoluirá para leituras mais sofisticadas, como os clássicos. Na ocasião em que li essa opinião, recordei-me de um jovem que conheci quando morava com os meus pais. Ele devorava os livros de Agatha Christie, e quando leu o último das oitenta e tantas novelas da autora inglesa entrou em crise, somente resolvida quando se decidiu reler os livros. Depois disso eu não acompanhei mais o caso, mas naquela ocasião ler outros livros que não fossem os de Agatha Christie não fazia o menor sentido para ele.

Também me recordo de um colega de escola que não podia passar um dia sequer sem ler o seu bom e velho faroeste de bolso, livros de qualidade literária duvidosa e pior traduzido. Este eu reencontro depois de muitos anos e não sei se porque o hábito faz o monge ou se por uma grande coincidência, encontro-o com um romance de Elmore Leonard. Ele não evoluiu para outro gênero, apenas melhorou suas escolhas de autor.

O fato é que normalmente um bom livro está associado a desafio. Desafio intelectual. Um bom livro pede nossa participação no processo criativo, e isso não é novo, a bíblia é um desses exemplos. Ler requer esforço, coisa bem diversa do que nos exige a televisão. Mas alguns não entendem isso. Esperam encontrar nos livros, as mesmas formulas fáceis da televisão. É por isso que os livros incluídos nas modas literárias e que passam semanas, às vezes meses, nas listas dos mais vendidos da Veja, são quase sempre livros de qualidade literária inferior e se constituem unicamente em entretenimento. Um objetivo indigno da literatura, diria Ernesto Sabato.

Acho que o bom livro é mais do que isso, transcende essa fronteira do meramente divertido. Mas o problema é que um livro especial pede um leitor especial. Entende-se por especial alguém capaz de um olhar diferente para a tirania da mídia no seu processo de mediocrização do público consumidor. Não alguém que simplesmente segue a onda. Falo de autocrítica e sensibilidade.

Qual é o problema, então?

Sobre a debilitada moda literária, Carlos Fuentes, no seu Geografia do Romance, citando José María Guellbenzu, diz que “a criação literária é elitista; é o acesso a ela que deve ser democrático e isso só se consegue por meio de uma educação para todos que permita erradicar a ignorância.”

Não sei quando isso foi escrito nem em que contexto. Só sei que os bons livros de literatura, aqueles que hoje são o orgulho da nação, que incorporam os maiores paradigmas das línguas que representam, tiveram no ato de sua publicação a pior recepção por parte do público. Não raro da crítica. A lista é enorme, este espaço não me permite enumerar, mas para não ficar muito vago, permito-me citar os romances de Kafka, o Ulisses de Joyce.

Herman Melville foi amado enquanto publicou historias de aventuras no mar, quando ousou ir mais longe com o seu Moby Dick e Bartleby, não vendeu mais nada e quase caiu no esquecimento. Jorge Luis Borges, uma das maiores expressões da literatura do século XX é considerado hoje um escritor lido apenas por escritores.

Osman Lins é conhecido apenas por Lisbela e o Prisioneiro, um exercício de criação literária produzido numa oficina, no começo de sua carreira. Suas obras mais importantes como Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia são considerados livros herméticos e somente lidos por escritores. Júlio Cortazar, um dos maiores escritores argentinos disse uma vez que trocaria toda sua obra por Avalovara do escritor brasileiro, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco.

Parece-me, às vezes, que os leitores da boa literatura sempre foram raros. Eles não são os membros de uma sociedade secreta prevista para daqui a 50 anos como diz Philip Roth. Eles sempre foram essa sociedade secreta. Sempre foram poucos, espalhados pelo mundo, com sensibilidade como a de Max Brod, primeiro leitor de Kafka.

A educação, aquela referida por Carlos Fuentes, responsável em produzir leitores especiais, não é, certamente, a mesma conseguida nas escolas de hoje, tampouco nas universidades onde se formam médicos, engenheiros ou advogados. Conheço muitos senhores e senhoras que ostentam orgulhosos os canudos que lhes emprestam títulos, honrarias e dinheiro no banco. E entre a grande maioria dessas bestas, não há nenhum Max Brod. A maioria absoluta nunca leu uma obra literária de verdade, e muitos se ressentem do Machado de Assis que foram forçados a ler no segundo grau, sob a ameaça de um equivocado, porém bem intencionado, professor de literatura.

13 abril 2009

Fanatismo

Há um livro delicioso que sempre leio e releio. O escritor e seus fantasmas de Ernesto Sabato é uma coletânea de pequenos textos, fragmentos de cartas, ensaios e resenhas literárias. Não há uma seqüência linear, embora quase tudo gire em torno do mesmo assunto: literatura. No livro, como sugere o título, nos deparamos com os fantasmas do escritor; suas inquietações e obsessões. Costumo ler em voz alta um trecho do livro, acho que foi o que mais me chamou a atenção em toda aquela babel de pequenos textos. Ando para lá e para cá recitando o trecho, sinto que é uma verdade que devo assimilar, por isso assumo uma atitude solene, alguma coisa parecida com os muçulmanos lendo e relendo o Alcorão a fim de que ele comece a fazer parte de sua natureza. No trecho o escritor diz que o fanatismo é a condição mais preciosa do criador, e enfatiza: é preciso ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante pode ser feito.

Hoje, lendo as Cartas de Flaubert, lembrou-me o livro de Sabato. Flaubert também fala, nas cartas, de seus fantasmas, e poucas páginas depois de leitura, percebemos que aquilo que mais preocupou e consumiu sua vida foi a literatura. Dele, podemos dizer, sacrificou tudo em nome da criação. Acho que Fernando Pessoa estava pensando nele quando escreveu seu axioma famoso. Num trecho de uma das cartas, há uma frase que sublinhei: Não se faz nada de grande sem fanatismo.


Provavelmente Ernesto Sabato leu as Cartas de Flaubert, mas talvez nem pensasse nelas no momento em que escreveu sua interpretação da condição mais preciosa do criador.

06 abril 2009

Da inércia

Não sou um entusiasta de minha própria desordem. Sou um crítico, lamento este meu caráter. Mas não é da desordem que provoca o caos, o que eu me refiro, não a desordem que pressupõe ação, movimento, revolução. Mas uma outra desordem, aquela que nasce da inércia, da preguiça. A desordem das coisas fora do lugar porque ninguém as colocou de volta na escrivaninha, na estante, no tinteiro. A desordem provocada pelo absoluto não fazer.

Há um livro de Luís Jardim que tem um péssimo nome “As confissões do meu tio Gonzaga”, mas que foi escrito na melhor tradição de Machado de Assis e do romance psicológico. No livro há uma personagem, o Gonzaga, que não consegue ser feliz porque um sentimento de profunda impotência o impede de dar curso a seus projetos mais simples. Convertido num ser sem vontade própria, vive a ditadura da inércia. Quando li o livro surpreendeu-me como Luís Jardim soube captar o espírito de sua cidade natal – Garanhuns – , uma cidade famosa pelas coisas que já teve e que apresenta em sua imobilidade crônica uma perfeita vocação para província.

A inércia também tem outro nome, chama-se Bartleby. No momento sou Bartleby com sotaque de Gonzaga.