31 março 2009

Da diferença

Há uma diferença entre escrever bem e escrever literatura. Não há nenhum paradoxo na frase de Autran Dourado. O bom aspirante a escritor sabe disso e utiliza um bom tempo da sua vida buscando a correta forma de escrever literatura. Em alguns escritores nos choca a maneira aparentemente desastrosa com que trata a língua, noutros notamos que o parágrafo nos cansa, ficamos esperando o outro parágrafo que nunca vem. Também há aqueles que superestimam nossa capacidade de decifrar os enigmas de sua escritura. Mas terminamos o livro surpresos de que as asperezas ou excessos não comprometeram a história, que o conto ou romance, apesar do “defeito técnico”, nos encantou ou causou perplexidade. É claro que há aqueles em que tudo parece corroborar para uma criação impecável, mas esses são raros, são os gênios, os monstros sagrados, bem estabelecidos no cânon: Guimarães Rosa, Borges, Osman Lins. Os bons escritores sonham em um dia pertencer ao cânon, e enquanto sonham se agarram à máxima de Flaubert. É isso ou desistir, meter uma bala na cabeça, contratar os serviços do vendedor de seriguelas. Mas a grande merda ou sinuca é que mesmo o escritor mais consciente, aquele que desconfia dos elogios e acha afetada a academia. Que se tranca no porão de Kafka e prefere literatura aos prazeres licenciosos. Mesmo o caladão, introspectivo e excêntrico escritor de livro inédito pode ser como o árbitro: conhece todos os lances de futebol e é um grandessíssimo perna de pau. É por isso que há tantos críticos e resenhistas.

26 março 2009

O povo

No “Elogio da Loucura” Erasmo de Rotterdam põe na boca de sua personagem aquilo que ele pensava de seu tempo, dos sacerdotes e da igreja, dos teólogos, filósofos e governantes. Você não acredita que está lendo um livro escrito há 500 anos. Na verdade ele esculhamba a todo mundo, inclusive ao povo, a quem chama de grande e estúpida besta. No início do século XX, nos anos tenebrosos do entre guerras, Céline, um escritor que seria considerado mais tarde maldito, pelas suas escolhas ideológicas, referia-se ao povo francês como corja de fodidos, catarrentos, pulguentos, espezinhados etc, e na Argentina dos anos setenta, Ernesto Sabato, num artigo, diz que entre o povo e a beleza se abriu um grande fosso, fala em vulgaridade e coisificação, e que o povo de hoje não é essa fresca e virginal fonte de toda a sabedoria e de toda a beleza que imaginam certos estetas do populismo.

É comum ouvir dos sociólogos de plantão que a coisa degringolou, que um processo desencadeado pelos meios de comunicação, a mídia, tem como objetivo tornar burro o povo. A gente escuta isso toda hora, já foi tema de uma banda de rock. Parece que todos estão certos de que o povo é vítima de inimigos poderosíssimos e secretos que se escondem por trás de fachadas de grandes conglomerados, multinacionais etc. O Capitalismo é também outro vilão, nele, dizem, o povo assume o papel de consumista e para facilitar as coisas, tem de se enquadrar num mesmo padrão de exigência, o da mediocridade. É por isso que os livros, incluídos na lista dos mais vendidos da Veja, não constitui esforço intelectual nem mesmo para um equus asinus.

Será que é isso mesmo, ou tudo não passa de uma outra versão da história secreta dos protocolos, uma farsa?

Às vezes me parece que o povo nunca foi melhor do que hoje. Que nunca existiu isso de áureos tempos. Não para o povo. O povo nunca teve melhor educação nem foi menos alienado. Lembra do imperador romano que dava pão e circo ao povo? Fazia isso e governava numa boa. Talvez um dia, quem sabe, o povo deixe realmente de ser o que sempre foi; esta grande e estúpida besta como dizia Erasmo de Rotterdam.

24 março 2009

biblioteca pessoal


Tirando a teologia e a literatura fantástica, poucos duvidariam que os traços centrais de nosso universo são a escassez de sentido e a falta de objetivo palpável.
Alberto Manguel


Há um amigo que me diz que isso de acumular livros é um grande absurdo, e considera o desejo de possuir uma biblioteca a maior de todas as excentricidades. Mas – eu perguntaria ao meu amigo tão cuidadoso das coisas lógicas e compreensíveis – não seria o absurdo e a excentricidade, não obstante toda e qualquer limitação das palavras, aquelas que melhor definem a nós, seres humanos, pateticamente fadados a nunca responder, senão considerando a teologia e o fantástico, as três perguntas fatais: quem sou? De onde vim? Para onde vou?

A existência é um absurdo doloroso, não raro, e poucos não concordarão, os momentos de infelicidade suplantam os de felicidade, e uma vez nesse barco ao sabor dos ventos – porque a inconstância é a lei que rege a nós todos – nos tornamos partidários de Sileno, “o melhor é não ter nascido, mas já que nascemos, o melhor é morrer o quanto antes”. Muitos suicidas concordariam com o sátiro e companheiro de bebedeira de Dioniso.

Para aqueles que nasceram e preferem viver, o melhor antídoto contra a fórmula de Sileno é a ilusão, e a biblioteca com seus milhares de livros que tentam compor e recompor o universo, é a melhor das ilusões que já experimentei.

Outra amiga vem nos últimos anos doando sua biblioteca, seu exemplo não tem nada a ver com o outro, ela sabe que não dispõe de muito tempo, é muito idosa, e como não possui herdeiros, é seu amor pelos livros que a faz escolher a dedo aqueles que ficarão com eles. Sinto como é doloroso para ela se dispor desses livros e talvez por isso o faz com lentidão, aos poucos. Também sou herdeiro dos despojos dessa biblioteca particular, coube a mim “O amor e a Lira” de Otávio Paz, uma antologia de poemas escolhidos de Robert Frost e uma novela de espionagem do Tchekhov.

Meu amigo é indigno da companhia dos livros. Não adquirindo os livros e formando sua biblioteca pessoal, ele lê os livros que a sorte reserva. Suas razões, por melhor que sejam argumentadas, recaem sempre na questão econômica.

22 março 2009

Na livraria


Na livraria, aquele pingo de gente. Saio por ali gravitando em torno dos livros expostos e dou de cara com a nova tradução, aliás a primeira vertida diretamente do russo, por Boris Schnaiderman, da Morte de Ivan Ilich. Peguei o livro e o visor ótico me deu outra boa notícia, não é caro; apenas 24 reais.

A livraria mantém um café no primeiro andar, com o livro debaixo do braço subo os oito degraus e me sento numa mesinha, a mesma de todas as vezes que vou ali. O rapaz já me conhece, também sabe de minhas posses, e de longe me faz um gesto, a mão estendida e dois dedos medindo a insignificância de meu pedido; um expresso, sem grãos selecionados nem os bolinhos de goma.

Quando o café chega eu já tenho lido a primeira página. Uns juízes sabem da morte de um colega e cada um se põe a imaginar o quinhão que lhes cabe. É um livro sobre a vida e sua insignificância, é um tratado da mesquinharia humana. Enquanto tomo meu café me lembro de Milan Kundera, foi ele quem disse que aquilo que melhor nos representa, a nós seres humanos é a insignificância. Acho que isso devia mexer com a fé de Tolstoi.

Numa mesa ao meu lado uma senhora conversa com uma jovem, e a não ser a gente e o rapaz que serve as mesas, o café está quase deserto.

19 março 2009

Amorte

Esta semana eu participei de uma coisa inacreditável. Um livro de um amigo meu, o Helder, foi submetido a um julgamento, ou inquisição, tanto faz. O acontecido (insólito?) me fez lembrar um livro que li, faz muito tempo, de um desses escritores americanos de sucesso.

O livro foi muito lido na época, e trazia um título curioso: Os Sete Minutos. Encontram um livro erótico no porta-malas do estuprador, e aí, o culpado, pelo estupro, não é mais Jack, mas o livro. O livro e sua influencia perniciosa. Uma coisa bastante crível na sociedade conservadora americana que elegeu o W. B. duas vezes.

Mas o sucedido lá, mesmo que ficcional, encontra paralelo no sucedido aqui. O livro do Helder foi adotado como pára - didático. O engraçado é que o autor do livro, sem querer, acabou colocando em maus lençóis o pastor e as irmãs que certamente não leram o livro pois decerto se enquadram naquela mesma categoria já descrita por Voltaire: “O miserável homem de um livro só”, no caso, a bíblia, muito mal lida e pior interpretada, e que tiveram de se explicar para as mães enfurecidas e preocupadas com a moral e os bons costumes.

Mas é preciso dizer que o Helder jamais poderia imaginar (eu o conheço, é um menino bom, alguém que poderia servir de modelo para o bom selvagem de Rousseau) que seu livro suscitaria polêmica, ainda mais do tipo que questiona valores morais. Algo inimaginável em 2009. Certamente se valeu Helder do axioma de Oscar Wilde, aliás, alguém que ele cita no livro, autor que escandalizou a sociedade vitoriana de seu tempo, o século XIX, e de quem Helder aprendeu que: “um livro não é, de modo algum, moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo”.

O livro Amorte é de poemas. Poemas sem nada de floreios românticos nem fingimentos poéticos do Arcadismo. Poemas contemporâneos que agradariam ao João Cabral de Melo Neto e que arrancou elogios de Marcus Accioly, autor de Érato e considerado por muitos como um dos mais importantes poetas vivos do Brasil, portanto uma autoridade no assunto.

As mães naquele auditório reunidas e preocupadas com a influencia perniciosa do livro, acusaram-no de agente deformador de seus lindos filhinhos que não assistem ao big brother nem comparecem aos shows de calcinha preta e bonde do tigrão. Entre essas senhoras, certamente bem intencionadas como asseverou um padre, também presente no auditório, e o Marcus Accioly, eu acho que fico com o Marcus.

A literatura está cheia de histórias semelhantes. Em todos os casos – não há exceção – os livros acusados de imoralidade têm na figura de seus acusadores sempre uma laia de hipócritas que se deixam conduzir pelo preconceito e ignorância. O Ateneu, de Raul Pompéia ainda hoje figura entre os livros proibidos da Igreja. O tema de que trata Raul escandalizou a sociedade de seu tempo. Num colégio católico, meninos são vítimas de padres homossexuais e pedófilos. Mas isso não existe. É coisa de literatura. Na Igreja não há pedófilos, a música que as rádios tocam são de bom gosto e trazem mensagem edificante de amor; amor virtuoso que não se realiza no campo físico, como queriam os poetas românticos no seu enfoque neoplatônico. A televisão só exibe programas educativos e o mundo é cor de rosa onde podemos criar nossos filhos em redomas de cristal.

No fundo eu acho que essas senhoras têm razão. O Helder é culpado, sua licenciosidade só encontra paralelo no Marquês de Sade. Ele devia estar preso bem como o Mário e seu auter-ego, o vendedor de seriguelas.

16 março 2009

O Deserto dos Tártaros



O Deserto dos Tártros de Dino Buzzati é um desses livros que não foi feito para entreter – um objetivo indigno da arte, diria Ernesto Sabato – mas para causar perplexidade, assombrar. Não sei não, mas se alguém me perguntasse o que achei do livro, eu diria que é uma das mais perfeitas metáforas da vida do homem moderno.

Um jovem tenente, depois de formado, é apresentado num forte, uma construção antiqüíssima e desolada. Ali, vivendo o absurdo de uma rotina militar, se vê pouco a pouco amalgamado ao quartel, incorporado às suas paredes, condicionado aos limites de sua geografia. O forte fica na fronteira, depois dele se descortina um grande deserto por onde, diz a lenda ou contam os mais antigos (como numa tela impressionista, a realidade é vaga e imprecisa) os Tártaros atacarão.

A não ser para alguns – talvez menos infelizes do que outros – que baseados no que chamam de fé ou esgotamento parecem encontrar as respostas fundamentais (Quem sou, de onde vim, para onde vou) a maioria ainda não divisou o fim do túnel. É preciso, portanto, encontrar um sentido para a vida. Esse sentido não é o mesmo para todo mundo, cada um o vê segundo critérios muito pessoais. É aquilo que satisfaz, que anima, seduz ou tornam as coisas especiais. Alguma coisa sobre a qual possamos dizer depois de uma longa espera: valeu a pena. Os militares presos à rotina no forte esperam pelos tártaros, os tártaros e a guerra farão deles heróis, justificarão o sacrifício, a solidão, o frio e o tédio.

Esperamos. Alguma coisa de especial nos acontecerá, justificará porque estudamos tanto, porque trabalhamos tanto, porque juntamos dinheiro, porque compramos as coisas, trocamos o carro e ambicionamos ser mais, muito mais do que o nosso vizinho. “Sentimos uma sensação inexprimível de coisas futuras”, apesar do medo, um medo tremendo de que não passemos de “um homem comum, a quem por direito não cabe senão um destino medíocre”. Quando a leitura do livro se apodera da gente não temos escolha e acabamos nos perdendo (num nevoeiro? Dentro de nós mesmos?) e quando a densa nuvem se dissipa e já não podemos ouvir som nenhum, encontramos uma criança, a criança que fomos nós. Ela ri. Está diante de algo maravilhoso, sente-se parte dela. A criança sabe – nós sabíamos – não há ninguém como ela. Sente-se especial e jamais duvidaria de que o mundo só existe em função dela. Não se satisfaz com o comum das especulações, tem mesmo certeza, embora a ninguém confidencie, de que é um ser especial vindo das estrelas ( Super Homem) a quem seus pais adotivos criarão com amor sem nunca revelar o segredo de sua origem.

Então acontece um fenômeno sobre o qual não nos haviam alertado. Crescemos e o encanto é quebrado. A certeza de que somos especiais pouco a pouco soçobra.

Nos anos que se arrastam os militares não mudam de patente – nos mais de trinta anos de serviço, Drogo, o jovem tenente, mal chega a major – uma sensação, mais forte do que o verdadeiro fato nos diz que o tenente é sempre tenente ao longo do correr dos anos, o capitão não aspira a ser major. O major nunca foi outra coisa. O coronel idem, com sua luneta na mão, perscrutando o avanço dos Tártaros impossíveis. Isso, entretanto, está longe de parecer a construção de personagens estereotipadas. Tem a ver com o tempo, reforça a idéia de que ele não nos traz benefício, nada de especial nos acontece (nem uma promoção). Tudo de bom que tivemos ficou para trás. Super Homem é apenas um herói em quadrinhos, e ai ficamos muito próximos de descobrir que o mundo não precisa da gente, que nossa morte não mudará o curso da história.

A todo o momento o autor parece nos lembrar o relógio que marca o tempo, o tempo célere, inexorável, sem nos alertar para nenhum tipo de “carpe diem” porque o momento presente não nos convida para o prazer; não há prazer, só insatisfação. Esperamos por algo melhor, o presente não nos basta, ele nos aponta para o homem no qual nos transformamos, o homem de agora, longe de seu sonho, desmistificado, idiotizado, frágil, medíocre.

Alguns episódios remontam a radiografia do absurdo militar, um absurdo muito próximo de Kafka, como aquele quando uma sentinela atira e mata o companheiro que se aproxima do posto esquecido da contra-senha. Mas o romance não é sobre a vida na caserna, embora se valha dela para ambientar a história, mas a vida mesma, de todos nós homens e mulheres em nossa transição do nada para o esquecimento esperando por algo especial que nunca vem.

04 março 2009

A cada um o seu


Fui apresentado a Leonardo Sciascia, (ler-se xaxa) por Adolfo Bioy Casares. É sempre assim, um autor nos apresenta outro com quem dialoga e se nos interessou o livro daquele, logo desejamos o deste. Eu já conhecia Borges – todo mundo conhece Borges – e foi ele que me apresentou a Bioy. Mas foi um período relativamente longo entre aquela apresentação e meu primeiro contato com seus livros, somente no ano passado, numa edição da Cosac Naify, conheci “A Invenção de Morel” e há bem pouco tempo, comprei a belíssima edição, também da Cosac, de suas “Histórias Fantásticas”.

Numa entrevista concedida à Roda Viva, por ocasião de seus 80 anos, e exibida em 1994, mas que eu só tive acesso outro dia, acessando o YouTube, o Bioy me surpreendeu. Foi como o Borges, um homem distinto, dizem que mulherengo; Borges parece que menos, e devotou sua vida, como seu companheiro, à literatura. Como o outro, conheceu mais literatura inglesa do que argentina, mas foi sobre escritores de seu país que me surpreenderam suas declarações quando taxou “Sobre Heróis e Tumbas” de Ernesto Sabato como livro regular e quanto ao Ricardo Piglia, hoje um dos escritores mais importantes da Argentina, foi quase deselegante situando suas teorias sobre o conto num campo entre a extravagância e o absurdo.

Mas deixemos essas considerações para outro dia.

Outra coisa que me chamou a atenção na entrevista do Bioy foi o entusiasmo que ele manifestou quando citou um italiano, contemporâneo seu e de Ítalo Calvino, o Leonardo Sciascia. Naquela mesma semana comprei um livro, editado pelo novo selo Alfaguara que traz um título curioso, sugestivo: “A cada um o seu”. O livro é fino, não passa de 135 páginas. Li no mesmo dia. O autor parece no início se valer do formato policial para ambientar uma história que se passa numa cidadezinha da Sicília, pacata e simples onde muito provavelmente nada de interessante ou anormal pode acontecer. Mas acontece, ou pelo menos temos essa impressão logo no início quando ficamos sabendo que a ameaça de um crime, anunciado numa carta anônima e endereçada a um pacato farmacêutico de fato é consumado.

O farmacêutico Manno não acredita na ameaça, considera brincadeira e na manhã seguinte, acompanhado de seu colega sai para caçar e é morto ele e o outro. O crime, claro, choca a todos e deixa a polícia desnorteada. Começam as indagações, seria mesmo o farmacêutico um homem pacato e sério? Não estaria ele envolvido com uma mulher casada ou coisa do gênero? Todo mundo agora tem um motivo para comentar, e a vida sem graça do Vilarejo se enche de inquietação. É interessante o capítulo em que encontramos a senhora Teresa Spanò, viúva do farmacêutico, escolhendo uma foto do falecido que seria reproduzida no túmulo. Diante das especulações sobre o caráter do marido, ver-se consumida pela dúvida.

Entre os circunstantes conhecemos a figura do professor Laurana, solteirão e solitário que se interessa pelo crime e acaba se embrenhando cada vez mais numa trama que pouco a pouco vai revelando seus meandros, e isso acontece não pela habilidade ou artimanha do detetive, não há detetive, só um professor, mas pela confirmação do óbvio. Na metade do livro um leitor atento já estará em condições de matar a charada. Depois disso, seria comum dizer que em se tratando de um livro de trama policial dos mais simples, o interesse do leitor desapareceria, o que não é o caso do livro em questão. O leitor já adivinhou tudo, mas se recusa a aceitar porque admitir isso é perder um pouco a fé no gênero humano, é alimentar seu ceticismo, é encontrar motivo a mais para ser infeliz. O título do livro de Sciascia é interessante, sugere partilha. O que cabe a cada um? Diferente do poema de Drummond, Cota Zero, o autor de “A cada um o seu” não se sai com uma ironia diante do dilema, não há esforço para disfarçar a verdade, ela nos é jogada na cara.

Sciascia faz parte de uma tradição de escritores a quem interessa a figura do homem comum metido no seu dia-a-dia. É esse o herói de seu livro, como um dia foi Aquiles herói de Homero. Se a literatura do passado privilegiou um tipo de herói superior às vicissitudes que atormentam o homem comum, à literatura na qual se filia Sciascia, a mesma literatura de Joyce e Graciliano Ramos, está interessada justamente nesse homem comum, talvez nosso verdadeiro paradigma.

A atmosfera de segredos e mentiras, a figura de um detetive que se orienta apenas pelas circunstancias de pistas deixadas quase ao acaso, uma bela viúva e seu primo importante e a suspeita de que “há algo de podre no reino da Dinamarca” é o mote que Sciascia utiliza para escrever um livro paradoxal porque divertido e fácil de ler ao mesmo tempo em que nos deixa um travo na garganta.

02 março 2009

Viagem ao fim da noite


Louis-Ferdinand Céline foi colaborador dos nazistas e escreveu três panfletos de conteúdo anti-semita, mas não é disso que eu desejo falar, mas de um de seus livros, publicado em 1932, na época um estrondoso sucesso. Nas mais de 500 páginas de Viagem ao fim da noite nota-se uma nova interpretação da modernidade, um livro, como poucos, arrebatador, um verdadeiro prodígio da criação artística, tão monumental que sobreviveu apesar das escolhas imperdoáveis de seu autor e toda difamação dos hipócritas.

Na primeira parte do livro encontramos Ferdinand, o personagem, voz em primeira pessoa, auter-ego de Céline. Ele se alista e vai para a guerra, mas não faz isso movido por ideal, antes o faz por fastio ou curiosidade. Mais tarde encontramo-lo metido em outras situações: numa distante África colonial e depois como estrangeiro vivendo nos Estados Unidos da Recessão, período que se encerra com sua volta à França, onde continua se sentindo estrangeiro apesar de sua ocupação como médico nos subúrbios miseráveis de Paris. Nos sucessivos cenários Ferdinand nos dá conta da desolação. A guerra, o meio do nada na África e a terra estrangeira reproduzem ambientes dignos de pesadelos, ambientes que nos causam gastura, tão deslocados e desconfortáveis nos sentimos. Entre os miseráveis, nos subúrbios, acompanha a escalado do horror representado pela morte iminente em decorrência de moléstias que antes de tirar a vida dos infelizes, tira-lhes o resto de dignidade. Também o encontramos sofrendo de impotência quando sua ciência não lhe dá condições de salvar a vida de um garotinho de sete anos e coadjuvante em outros episódios até quando foge e tem seus serviços requisitados para trabalhar num manicômio. Nesse período reencontra Robinson e Madelon e acompanha até o desfecho trágico o relacionamento doentio dos dois. Em todos esses momentos, vive quase no limite, seja porque acometido pela fome, sede, humilhação ou perplexidade.

A viagem ao breu da desesperança não é estratégia que leva Ferdinand à expiação. Não é de Raskólnikov que estamos falando, sofrendo por acreditar-se culpado num mundo racional, habitado por bons e maus. Para Céline não há inocentes nem redenção, o mundo não tem sentido, existir é uma maldição, e Deus, mais uma mentira inventada com a pior das intenções. A viagem não ilumina nem amadurece. As sucessivas provações não têm um propósito, antes conseqüências, e delas, as conseqüências, resulta apenas um espírito embotado e um corpo alquebrado.

É preciso dizer que Céline faz parte daquele grupo de escritores malditos, movidos por um forte sentimento de pessimismo com relação ao gênero humano, tudo o que diz soa no primeiro momento sacrílego, um Sade piorado, já que o outro, ao menos, encontrava na libertinagem justificativa e lenitivo para o doloroso existir. Mas esse pessimismo, esse despeito, uma fúria incontrolável por uns e um nojo abjeto por outros, que faz Ferdinand esculhambar a tudo e a todos, e até dirigir-se nesses termos a seu povo, o povo francês, essa “corja de fodidos, catarrentos, pulguentos, espezinhados, que vieram parar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelas doenças e pelo frio, os vencidos dos quatro cantos do mundo.” Essa fúria é, em última análise, a fúria de um homem que se importa.

Não é cinismo o que suas palavras traduzem, mas desespero.

O desespero de quem se incomoda. Depois de viajar até a página 108, surpreendeu-me suas considerações a respeito de Alcide, um outro perdido a quem Ferdinand encontra em sua jornada pela noite. A princípio um tipinho medíocre, a quem nosso herói devotaria todo seu desprezo não fosse um detalhe. Destacando num posto avançado de uma das colônias francesas da África, Alcide vive toda uma vida miserável, cheia de privações, para garantir a uma menininha, sua sobrinha, deixada lá em Bordeaux, uma educação das melhores, no colégio das irmãs chiques. Também há Molly, a prostituta americana, uma outra Sônia de Crime e Castigo, um corpo que se presta ao comércio da carne e mesmo assim abriga uma alma puríssima, capaz de renúncia e sacrifício. O sacrifício por outro, que ao Marquês* causaria deboche, enche os olhos e a alma de Céline, alguém que defendeu com entusiasmo a morte dos judeus.

Contradição? Sem dúvida. Céline é paradoxal e como os pessimistas, sente uma irresistível paixão por aquilo que condenam, em seu caso, o gênero humano. Assim como Kafka, seu mundo está povoado de pesadelos, e se não há saída, não há esperança, resta o desespero.